Atlas Mórficos

Um Mundo de Música
38 min readJul 23, 2020

--

Um estudo em 31 excertos semi-improvisados para falar com os fenômenos musicais do agora e de sempre; os 50 maiores discos lançados entre janeiro e dezembro de 2019.

O s Países :: Escutar um grande disco é como colocar um país dentro de casa — sendo a casa essa habitação íntima feita de concreto, móveis e tinta, ou aquele abrigo cerebral-corporal (no uso dos fones). Esse país é um país sem mapa, originado pelo disco mesmo. É um país de geografias próprias e determinadas pelas propriedades, por assim dizer, pictóricas e também pela hiperdimensionalidade de um disco.

Só que esse país acaba de algum modo revelando-se um país mesmo: é eventualmente a Finlândia, a Noruega, os Estados Unidos, a Indonésia, é Barbados, a Somália, o Djibouti. São os países em si ou partes deles. São partes determináveis cartograficamente, ou talvez partes da memória abstrata e ativa desses países.

Dito isso, quantos países foram originados desde a descoberta desses pontos cardinais da música de agora, The Way Up, do Pat Metheny Group, Ta Det Lungt, do Dungen, e Yellow House, do Grizzly Bear?

Esses trabalhos de geografia sentimental, passeios de ativação de uma substância emocional diferente de todas as outras nos ouvintes preparados, são também tratados de recriação e eleição de determinados países.

Feitos no mesmo ano, aquele que começou em janeiro de 2004 e terminou apenas em janeiro de 2007, esses discos nos conduziram por Missouris e Kentuckys que ainda estavam aprisionados na névoa e na atmosfera das inspirações, nos deram Colorados e Massachusetts encravados em imaginações muito pessoais, nos apresentaram áreas em Gotenburgo e Estocolmo que se manifestaram como aquilo que são: obras de eletroecologia selvagem e ainda assim desenhadas rigidamente pelo Estado, criações de ecoeletrônica dos encontros pacíficos e do isolamento em espaços capazes de perpetuarem-se em brilhos sazonais.

Esses discos também criaram um halo de abertura, um lume mágico na história da música recente: deram a outros discos, por meio da inspiração direta ou indireta, a capacidade deles também assumirem-se e despertarem enquanto países, nascerem enquanto obras provocadoras e reprodutoras de países. Isso vem acontecendo com frequência e energia nos últimos 15 ou 16 anos.

Na Escandinávia, há músicos como Gard Nilssen, Petter Eldh e André Roligheten reencontrando Togo através de New Orleans. Há outros redescobrindo as cidades que o Dungen construiu mas não colonizou. Da Holanda, aparece essa expedição Arifa musicando com instrumentos de madeira o país judaico dos Shtetls. Esse país judaico do fim do século 19 é gravado com portas mágicas, entradas por árvores frondosas. São gravuras também da própria Holanda, a Holanda do passado, dos encontros envergonhados entre aquelas raças nativas (judeus e germânicos), do Apartheid racial e cultural embrionário e vigoroso no interior.

Os Estados Unidos Secretos de 1987 são televisionados, roteirizados e portanto revelados pela mente musical prodigiosa de Winston Cook-Wilson, do Office Culture. Em A Life Of Crime, Cook-Wilson aproxima-se de outros construtores de Estados Unidos-pela-música, como Chris Cohen, Luke Temple e mesmo os Pixies, esses arquitetos de garagens-enquanto-fantasia, planejadores de uma história paralela da composição dos espaços sentimentais norte-americanos.

Espaços sentimentais também são o terreno de pesquisa e realização mágica de bandas escandinavas que inventaram seu próprio jazz. Daniel Herskedal, Hvalfugl, Jonas Haavisto e La La Lars trabalham fundindo pedaços de uma espécie de terreno geoemocional comum mas infinito em sua variedade. Constroem uma série de passados-do-futuro, novas cidades encantadas com ametistas e ágatas selvagens descobertas durante escavações em campos do conforto musical.

Esse vocabulário geológico e geográfico não se refere ao nada e não chega por acaso. Jazz é um tipo de história natural, com seus deslocamentos e transportes vagarosos e significativos. Pense nos chifres que dão origem aos instrumentos de sopro fundamentais— chifres desenhando o ar das cidades através da respiração humana, respiração de homens que construíram dentro de si migrações e territórios íntimos do planeta. Pense nas migrações dos bichos, na presença florestal das árvores, da madeira, que existe para que se origine a lenha, mas também o piano que, igualmente, aquece as existências. Pense na história dos deslocamentos humanos pelo mundo, mesclada então às maiores possibilidades sentimentais da humanidade. Jazz é o segredo histórico no rebuscamento, na manufatura e na transformação.

Toda grande música desde sempre é feita por artistas cardinais e transitórios. Há, nessa música, tradição em derretimentos, revelada e modificada em contínuos derretimentos. E de fato há uma vanguarda, que não é atonalismo, mas uma dialética da caça encantada. E o que é dialética da caça encantada: é esse desejo de sair pela África, pela Ásia, onde há essas madeiras, esses chifres (sopros), essa matéria do primeiro cantar, esses carvalhos, nogueiras, mognos e acácias, e encontrar uma fauna de animais novos. Nenhuma música feita pelos grandes escapa desse safári, desse exato tipo de safári.

Jazz (e a grande música em si) é portanto madeira e chifre, é fauna, migração e árvore — ou seja, o antigo, o mítico — transformando-se em novos animais que chamamos de instrumentos (todos, mesmo o seu PC!). E depois em novos animais de música, o que se dá por meio de uma percepção de que música é exuberância fugidia.

Tudo isso é o jogo dos países, seu movimento cinemático e dramático no mundo.

Aliás, aqui, antes de terminar essa introdução, uma notação mais definitiva sobre países e música. Um som de banjo pode ser um signo de lugar: Alabama. Transformar esse som de banjo em outra coisa, algo formidável e desconectado do Alabama, é retirar dele o signo e encontrar uma nova coisa: a música. Grande música é dessignização através de dialéticas sutis da harmonia. Esses discos basilares foram fundo nessa aula.

O feitiço que aqueles três discos seminais lançaram é longevo e pegajoso, a ponto de eu não conseguir ver-me de outra forma senão como viajante musical e agente de expedições pela música, ocupado demais para parar. A minha intenção, a cada livro anuário de música como este, é trazer, aliás, trazer não, forjar mais um país, um país diferente cujas terras são essas que se formam na junção de todas as que estão descritas pela música e pela música-em-mim. Minha ideia é a cada ano compor um país formado por micropaíses de música.

Arte é ressurgência desconcertante do que ficou ocultado. E é ocultamento majestoso do que surgiu. É aparecimento e fuga. Esses países surgem e ao mesmo tempo são defendidos por um tipo de vapor que não nos permite desvendamento total, nem saída. É de não-saídas (e de uma aptidão a abrir nossa existência para toda sorte de encantos) que são feitos os grandes trabalhos da música.

Leia a investigação musical que publiquei no ano anterior. E também a do ano retrasado.

Ajude-me a viver só de ficar pesquisando disco.

Toda a arte presente neste estudo é de minha autoria e surgiu para que eu pudesse homenagear a música que me fez companhia por tanto tempo.

50. Skarbø Skulekorps :: Skarbø Skulekorps

Assistencialismo :: Acontece algo na música da Dinamarca, da Suécia e da Noruega que não acontece na música de outros lugares. Bandas que parecem originárias de uma cultura de conjuntos-de-colégio surgem ali fazendo grande música, como se isso fosse algo normal. Essas bandas, como Big Bombastic Collective e o Skarbø Skulekorps, não tocam exatamente jazz, mas sim, como é bem típico do mundo musical escandinavo, uma síntese de assimetrias que partem do jazz e do folk mundial e tornam-se novas simetrias. Confeccionam uma série de tramas do desconforto que se tornam então ortodoxias do conforto.

Dentre essas ortodoxias há por exemplo a que viaja desde o interior americano (vamos chamar aqui de mundo indie americano) e se une ao magma de conforto escandinavo, que é uma mentalidade anterior a todas as outras em jogo ali, uma forma soberana, um composto em si.

O que unifica essas bandas é uma ligação com o sopro. Os instrumentos de sopro. Quem sabe o sopro simbolize uma estética do conforto antes mesmo da aplicação de harmonias do conforto, ou do novo conforto, segundo o padrão escandinavo. O fato é que todas elas são bandas de música da tradição do ar em chifres: trompetes, trombones. Na Escandinávia há uma fauna livre desses animais distribuídos pelas florestas, e há um incentivo a bandas escolares, um programa curricular e muito dinheiro investido nelas.

Pra mim, essas bandas podem, com o auxílio monetário do governo na fase adulta, até comprar instrumentos similares aos que aprenderam a manusear no colégio.

Mas tenho a sensação de que é o colégio que compra esses equipamentos periodicamente e cede os antigos a alunos mais dedicados e com uma fome musical mais aparente. Na minha visão o que ocorre é empréstimo eterno de instrumentos do Estado, via escolas, aos alunos. E aí essas ortodoxias do conforto através dos sopros são testadas, experimentadas e aprofundadas.

Essa é a história dessas bandas, uma que revela uma generosidade que se transforma em outra: os próprios discos, catalisadores de uma visão musical e artística assistencialista, que acredita em nós, humanos, como seres que precisam e reafirmam o pequeno-conforto e recebem irradiação sentimental dessas experiências musicais ao se pôr dentro delas.

Este disco também é citado na posição 37.

49. Girlpool :: What Chaos Is Imaginary

Califórnia :: O apocalipse é o momento em que a verossimilhança torna-se outra coisa, uma farsa real. O mundo abandona seu eixo, encontra rotação e luminosidade impossíveis. A verossimilhança abandona seu axis, o alicerce natural, e passa a contemplar outro, o da fantasia. A grande arte musical é uma música de dialética, em que o crível, isto é, o próprio cotidiano do compositor e do ouvinte, sua jornada diária pelo mundo, contempla o incrível (o incrível sendo então nossa herança).

E é por isso mesmo uma perpétua manifestação de apocalipse; mas, antes de tudo isso, um perfeito abrigo apocalíptico, de onde surgirão os pequenos castelos de retiro dentro da mente e da vida. Essa música é também, portanto, a chave para entendermos o apocalipse: se ele existe, é também pra que emerja esse tipo de arte e nova humanidade renovada pela arte. Mesmo nas imperfeições, Girlpool, Anderson. Paak e Steve Lacy (ambos citados mais abaixo na lista) conseguiram de uma certa maneira encontrar e entalhar esses discos-abrigo em What Chaos Is Imaginary, Ventura e Apollo XXI. Esses discos do tempo.

É típica da Califórnia, país desses atos de música, uma cultura de apocalipse: seitas espalhadas pela região de Los Angeles, promessa de terremotos maremotos que derrubariam as cidades. E, além desses, o elemento mais destacado: a desertificação que impera em boa parte do território, consumido de tempos em tempos por incêndios florestais, como aquele que nos é mostrado na primeira temporada apocalíptica de The Affair. Esse estranho arranjo de fenômenos acabam por transformar ou reafirmar o lugar como um abrigo de musicalidades que transitam entre a futilidade mórbida e a magia.

48. Steve Lacy:: Apollo XXI

Este disco é citado na posição 49.

47. Kaytranada :: Bubba

Este disco é citado nas posições 37 e 11.

46. Hans Mathisen :: Moving Forward

Este disco é citado nas posições 32 e 14.

45. RaaDie :: Vast Potential

Cataclismo marítimo :: O tsunami é uma catástrofe espetacular que faz o oceano revelar-se não mais constante, maquinal e, em sua neutralidade, pouco afetuoso (dependendo das correntes que o cortam, o banhista pode se afogar e ele o devolverá à praia conforme sua mecânica e desejo o permitirem). Sua performance azul e deslumbrante, que nunca pára, que é sempre igual, tem no fenômeno apocalíptico do tsunami uma interrupção.

No tsunami, o oceano faz aquilo que sempre tememos: cresce demais. Ganha vida e ímpeto. Engole a cidade e faz as ondas chegarem às ruas, às casas. O tsunami é pior ainda quando acaba, deixando como registros de sua aparição a água que cobre a cidade, os corpos nas árvores, os tetos debaixo dos muros, como aliás os furacões também conseguem fazer, e também os ciclones, em outra proporção.

Existem as músicas que nos contam sobre o mar em seu estado provisório — a fera que ele se tornou por alguns dias — e o que ele foi antes disso. A história anterior ao tsunami, e sua história de recomposição repentina e cruel depois do cataclismo. São rotas narrativas — sustentadas por explorações modais-harmônicas com piano — por essa desfiguração marítima, com tudo o que há de interessante, angustiante, triste e esperançoso numa catástrofe. Esforços brilhantes deste exato momento da música, como Vast Potential principalmente, Mortality, Voyage, This Land Abounds With Life e Northbound (os discos aparecem mais abaixo no texto), são os registros e documentos dessa vida marítima dentro e fora da neutralidade apática.

Este disco também é citado na posição 37.

44. Aki Rissanen :: Art In Motion

Este disco é citado nas posições 28 e 14

43. Fabian Almazan Trio :: This Land Abounds With Life

Academia :: O samba corrige a academia. Os caras do mundo do samba chamam-se de acadêmicos por que e com que impacto:

O carnaval é um conjunto de estudos que origina ideias, sociologia, música, instalações lúdicas e plásticas, fantasias, sendo na verdade tudo fantasia (no sentido que se conhece da ficção), e é assim (fantasia) quando a música se eleva e toca o todo, tornando-o algo alienígena, fora das circunferências determinadas pelas ideias primeiras, pelos escritos basilares, pela narrativa fundamentante e precedente ao desfile.

Um gesto acadêmico, no sentido corrigido, seria portanto unir as partes, competências, técnicas, rigores cenográficos, investigações texturais, experimentações plásticas e deixar o fluído fantasma (a música, no caso) contaminar o restante, que a partir dessa contaminação começa então a poder falar: isto é, comunicar as importâncias além-do-texto, além-da-estética-primeira. Falar o mundo, falar à e a humanidade. Essa comunicação, pela música, autoriza-nos a um contato com uma estética além, uma que realiza-se no transe, na fruição mágica, num choque de vida. Samba é a academia para um mundo à parte, e de fantasia.

É dessa academia um novo senso de nostalgia. Mas a nostalgia não mais como a sensação que deriva da falta do que foi, mas o impulso que mantém a criação sedenta pelas novas alvoradas. Um impulso que o faz capaz de produzir auroras. Nostalgia como o entendimento e a presença de um senso superior de tempo. A realização pessoal e sentimental no agora de um futuro que estava só desenhado e imaginado em algum momento do tempo. Tomar os mortos como alegorias vivas, irradiar os segredos.

Alguns são os discos do samba, do carnaval, da nostalgia reencantada, sem no entanto sabê-lo. This Land Abounds With Life, Hot Motion, Raft In Placidity, Bedehus og Hawaii, A Life Of Crime, Reach Out e Mystery Hour (todos álbuns que vêm mais abaixo no texto): discos perfeitamente, e corrigidamente, acadêmicos.

Este disco também é citado nas posições 45 e 17.

42. Anderson.Paak :: Ventura

Este disco é citado nas posições 49 e 19.

41. Alexi Tuomarila Trio :: Sphere

Este disco é citado nas posições 32 e 28.

40. Avey Tare :: Cows On Hourglass Pond

Nova ecologia :: O contrário de profissional não é diletante, nem amador, nem utopista, embora os termos sejam Ok. O contrário de profissional é artista. E artista é incinerador-do-capital. Incinerar o capital significa oferecer diretrizes de cura humana pela tecnologia, nova ou obsoleta, parada no tempo ou destinada a nos embasbacar, e assim deixar o solo limpo e higienizado para dele surgirem gêneros botânicos, plantas que germinarão pelo esforço de uma engenharia subjetiva. Essa engenharia, por sua vez, se faz um esboço de metaecologia, ou uma ecologia da subjetividade: atinge e fornece luz, alimento, cor, reflorestamento ao corpo dos vivos através da abertura de um mundo íntimo estrangeiro, outro, com todas as possibilidades geográficas (ou talvez “ontogeográficas”) mais interessantes.

Trond Kallevåg Hansen, que fez Bedehus og Hawaii, Avey Tare (no que é seu melhor disco até hoje), Dylan Moon, que fez Only The Blues, e Matt Ulery, que gravou Delicate Charms (todos esses aparecem mais abaixo no texto), integram uma espécie de consórcio internacional do antiprofissionalismo, da exploração ontogeográfica, da metaecologia, da ecologia da subjetividade e da ecologia dos sons propriamente dita (madeiras inusitadas decompostas ou recompostas, climatologias raras, jogos de luzes na floresta).

39. Dylan Moon :: Only The Blues

Este disco é citado nas posições 40, 25 e 18.

38. Petrified Drops :: Raft in Placidity

Este disco é citado nas posições 43, 32, 28 e 9.

37. Ilmiliekki Quartet :: Land Of Real Men

Pátria :: Música é afinal uma conspiração para refundar seu país. Existe um país, um país interno, cultivado nos limites sentimentais, interno aos territórios imaginativos do compositor (pense nas obras de América Paralela de Brian Wilson, Todd Rundgren, Rupert Holmes, The Rascal Reporters, Steely Dan, Pat Metheny Group).

E existe a expansão desse país do compositor: um contágio dessa nova terra impactando seu país físico e tudo mais que há ao redor e exposto por sua música. O país abstrato, que ele quer reordenar segundo seus desejos e que ele então refunda, passa a existir nos outros, começa a florescer e ganhar área em outros, em nós. Essa conspiração não pode estar fora de Vast Potential (esse mais acima no texto), não pode estar fora sobretudo de Land Of Real Men, Voyage, Farkost, Northbound (esses mais abaixo) e do álbum do Skarbø Skulekorps (mais acima no texto), essas grandes bandas escandinavas do jazz (Finlândia e Noruega principalmente), e em escala diferente também pertence a Bubba (também mais acima no texto).

36. Ilugdin Trio :: Reflection

Este disco é citado nas posições 32 e 4.

35. Iago Aguado :: Festina Lente

Este disco é citado nas posições 28, 17, 14 e 7.

34. Trond Kallevåg Hansen :: Bedehus og Hawaii

Este disco é citado nas posições 43 e 40.

33. Alex de Macedo :: Natureman In Factoryland

Estudar :: Um estudo é a travessia por um caminho de mutação mágica. Mutação mágica de um determinado corpo. Com a proposição de novos elementos, de cores de pensamento, de olhares pictóricos a criar diálogo com um objeto que está descoberto, exposto, gravado, pintado, e com a disposição para a saída, o esquecimento provisório e o retorno a esse objeto, esse corpo, o que se descobre é um poder de reconfecção.

O corpo passa a ser não mais apenas o objeto que então ali repousava, mas um verdadeiro monumento. Ou pelo menos um monumento diferente. Um que se desvela de pouco a pouco e substitui aquela presença original. Um estudo é um jogo de metamorfoses a gerar mudanças significativas no objeto e no estudioso (em sua mente, em seu ânimo, em suas ondas cerebrais, em seu próprio corpo portanto). Esse caráter de estudo, de experimentação a criar mutação, e de experimentação na apreciação a criar mutação no que se sente sobre o “objeto” apreciado (não mais um objeto portanto, mas uma espécie de novo órgão), está também na jornada da escuta, e na jornada do fazer musical. El Rayo de Luz (mais abaixo no texto) e principalmente Natureman in Factoryland, do germano-brasileiro Alex de Macedo, são exemplos vívidos.

32. Matt Slocum :: Sanctuary

Clássicos :: Talvez a definição para uma certa família da música que eu considero muito valiosa seja precisamente classicismo revertido. Classicismo não mais como fala ou tecimento do bom-gosto e da simbologia passadista simplesmente; mas enquanto entrada em uma atmosfera de conforto em que os corpos e cadáveres não pesam, aliás, existem ali como meros técnicos da máquina de conforto. O conforto não mais como uma obviedade, uma facilidade, uma manifestação de pobreza imaginativa e medo, mas como a dimensão das grandes alegrias. É o carnaval, que toma os mortos como alegorias vivas, detalhes minúsculos encantados e manufaturados com amor.

É o caso deste brilhante (e bem nomeado) Sanctuary, mas também de Moving Forward, com sua ironia no nome (citado mais acima no texto), de Reflection (mencionado logo acima), Sphere, Raft In Placidity (também acima), Reach Out, Offshore e mesmo Both-And (esses mais abaixo no texto).

Este disco também é citado na posição 14.

31. Temples :: Hot Motion

Este disco é citado na posição 43.

30. Matt Ulery :: Delicate Charms

Este disco é citado nas posições 40 e 28.

29. Peuker8 :: Radiance

Este disco é citado nas posições 28, 17, 14, e 4.

28. Rebecca Nash & Atlas :: Peaceful King

Novas simetrias :: A desconstrução, em sua forma máxima, é a reconstrução das simetrias.

Simetria é a conversa harmônica entre partes. Desconstrução seria uma infiltração, uma intervenção para reestabelecer o sentido dessa harmonia. Simetria e mesmo harmonia passam, na desconstrução mais cuidadosa, a ser termos voláteis, manejáveis, plásticos. E então passam, igualmente, a ser termos da convivência e da conversação. Pois o que é harmônico e simétrico o é agora na duração, nas etapas, em eterno diálogo.

A desconstrução é a proposição de uma jornada entre as peças, e sua revitalização e reorientação a uma reconstrução do que antes era situação amorfa, fixa e falsamente bela. Ou melhor: totalmente bela, sendo o belo a prisão. Agora ela é simplesmente… bonita. A iniquidade se torna generosidade. A dissonância vira consonância e depois ressonância profunda. A dialética das notas e elementos então torna-se dialética mesmo, dialética humana, dialética viva no mundo.

O mundo passa (volta) a ser mundo, e quem não participa dessa lógica passa a estar fora dele. Desexiste. Delicate Charms, Sphere, Art in Motion, Festina Lente, Radiance, Raft in Placidity (todos esses citados mais acima), Aubes Et Crépuscules, Les Mauvais Tempéraments, Playtime 2050, Offshore (citados mais abaixo no texto) e este bonito Peaceful King, sobrinho do clássico maior do ressimetrismo inglês, Rotters Club, são esses novos manejos da simetria e da existência musical.

Este disco também é citado nas posições 11 e 9.

27. Mortality :: Mortality

Este disco é citado nas posições 45, 14, e 4.

26. Marta Sanchez :: El Rayo De Luz

Este disco é citado na posição 33.

25. Omni :: Networker

Planejamento :: Com Networker, penso na força musical de um Gentle Giant ou de um National Health reimaginada e adaptada às cidadinhas semi-universitárias, construídas em torno dos campos de baseball amadores dos Estados Unidos. Essa força não correspondendo tanto a angulações harmônicas, explorações algébricas e trigonométricas da composição, típicas dessas bandas inglesas e esboçadas aqui, mas à criação de leitos obliquamente geometrizados e povoáveis pela humanidade. Uma força de um feitio mais próximo a um raio de inspirações arquitetônicas desgovernado no tempo, que recebe uma esperada encarnação musical, já que música é desenho de confortos, exploração de confortos prováveis.

O rock de garagem americano — assim como o jazz escandinavo que vem jorrando por aí — é antes de tudo um projeto para a construção e planejamento de um tipo de cidade, que se assemelha à cidade dos pais dos integrantes dessas bandas, mas tem um outro tempo, uma outra rotina, um outro afeto diante das paisagens. Only The Blues (mencionado mais acima no texto) é outro grande exemplar do ano.

24. Envisage Collective :: Reach Out

Este disco é citado nas posições 43, 32 e 5.

23. Christophe Panzani :: Les Mauvais Tempéraments

História Natural :: Jazz é uma espécie de continuidade de uma história natural. Pense nos chifres que dão origem aos instrumentos de sopro fundamentais — chifres desenhando o ar das cidades através da respiração humana, respiração de homens que construíram dentro de si migrações e territórios íntimos do planeta. Pense nas migrações dos bichos, na presença florestal das árvores, da madeira, que existe para que se origine a lenha, mas também o piano que, igualmente, aquece as existências. Pense na história dos deslocamentos humanos pelo mundo, mesclada então às maiores possibilidades sentimentais da humanidade. Jazz é o segredo histórico no rebuscamento, na manufatura e na transformação.

Toda grande música desde sempre é feita por artistas cardinais e transitórios. Há, nessa música, tradição em derretimentos, revelada e modificada em contínuos derretimentos. E de fato há uma vanguarda, que não é atonalismo, mas uma dialética da caça encantada. E o que é dialética da caça encantada: é esse desejo de sair pela África, pela Ásia, onde há essas madeiras, esses chifres (sopros), essa matéria do primeiro cantar, esses carvalhos, nogueiras, mognos e acácias, e encontrar uma fauna de animais novos. Nenhuma música feita pelos grandes escapa desse safári, desse exato tipo de safári.

Jazz (e a grande música em si) é portanto madeira e chifre, é fauna, migração e árvore — ou seja, o antigo, o mítico — transformando-se em novos animais que chamamos de instrumentos (todos, mesmo o seu PC!). E depois em novos animais de música. O que se dá por meio de uma percepção de que música é exuberância fugidia.

Tudo isso é o jogo dos países, seu movimento cinemático e dramático no mundo (esse trecho integral aparece na introdução, mas quis reeditá-lo aqui,em outro clima e em outro entorno, como acontece aliás em todo esse disco! Mas continuemos).

Fora isso, toda história humana que seja interessante é também uma parte da história natural, em um sentido mais abstrato. O tráfego de pumas, panteras, preguiças gigantes, tatus mastodônticos e dentes-de-sabre, que se encontraram atravessaram estradas florestais por dentro das Américas, originando depois, no fluxo contínuo das coisas, a onça atual, o tatu atual e a preguiça atual, é análoga à história secreta das famílias, seus segredos, suas alianças não-ditas, suas pequenas tragédias pulsantes.

A música é a história dos deslocamentos humanos, isso é inegável, dos povos que saíram dali e foram dar aqui. E é a história dos deslocamentos que se dão pelo tempo especial da própria música, que se desenrolam em seus túneis exclusivos. Um baixo gravado aqui que, mais do que inspirar determinada produção ali, é cooptado numa reprodução deformante, profanante, num sample, e cria a desfiguração inequívoca e necessária na história daquela “família” — sua imigração feita sob o silêncio do medo e o impulso da preservação. Falo também de certo fantasma existente ali, numa determinada composição, e que, de maneiras que não se curvam à fala acessível, vem falar de outra coisa, de outro mundo; comunicar sobre uma construção musical acolá ou sobre uma fração estranha e esquecida da história humana no mundo. Uma fração de história que aquece e acalenta — absorve-nos — conforme vai ganhando verbo, musicalidade e corpo.

A história do grande jazz é também esse tipo de história natural, essa colcha de travessias, histórias e heranças confusas (confusas porque sobretudo fundidas-em-combinação), essa história das famílias musicais. Discos como a pequena orquestra das estações Les Mauvais Tempéraments encarnam-na dramaticamente. Uma porque as estações são a própria razão dinâmica das histórias e dos biomas. E também porque parece haver ressoando nesse disco todo grito regravado e agora celebrável de alce, veado e outras famílias chifrudas; toda migração e plantação de gêneros arbóreos, dessa vez num ritual de pacificação do desmatamento, originando pianos, aquecimento (aliás são sinônimos: piano e aquecimento) por meio de lenha, por meio das vitrolas antigas também.

Este disco é citado também na posição 28.

22. Joonas Haavisto :: Offshore

Teatral :: Teatro é um corte no andamento das coisas, um abalo no cenário dos eventos em que a vida normalmente transcorre. Esse corte, essa pausa, convoca uma sucessão de cenas-sob-ou-em-volta-das-luzes que provém de uma imaginação estrangeira — estrangeira porque participante e observadora desde uma outra dimensão da vida — que as manufatura. Por estrangeira entende-se também aquela imaginação que não vive em outro lugar senão o dessa pausa, desse abalo. A imaginação estrangeira, do autor, do encenador, vive a nos especular e a receber os códigos das almas humanas.

A música teatral, o que eu chamo de música teatral, pode soar assim — teatral — pois está sendo tocada num ambiente que se pode compreender teatral, parece tocar e reverberar no piso de madeira do teatro, falar ao tablado, às varandas de manobras, às coxias e aos ambientes cênicos. E é teatral também por nos trazer para esse momento de fenda. Oferecer um abalo muito específico. Offshore é um disco teatral, assim como Aubes Et Crépuscules, Playtime 2050 e Northbound (citados mais abaixo no texto).

O piano no jazz escandinavo tornou-se fundamentalmente uma máquina de fazer países, Noruegas, Finlândias, descoberta no armário. Um brinquedo de teatralização saudável da nostalgia e das memórias arbóreas dos compositores.

Este disco é citado também nas posições 32 e 28.

21. Michael Kiwanuka :: Kiwanuka

África futura :: Nigéria e Quênia são repúblicas criminais e exploratórias, frutos da exploração original de seus territórios enquanto extensões monárquicas e do capitalismo inglês.

Eu penso que esses lugares escondem, sob esses disfarces históricos, algo que posso chamar mesmo de selvas. Mas que não são selvas no sentido meramente geográfico, não são selvas no sentido tradicional de “selvagem”: são habitat de uma fauna repleta. São leitos de infinitude. Pra mim, o que esses países africanos pós-tribais guardam não é a barbárie exploratória do presente e do passado — em sua plena continuidade atualizada — , mas sim uma espécie de segredo do porvir. Uma memória de futuro, esse futuro sendo o próprio continuar dessas civilizações que se manifesta e se desenha por meio de música. Um continuar que se confirma, ironicamente, com invasões desses descendentes musicais às capitais das monarquias invasoras degradadas e (também artisticamente) despedaçadas.

Esses discos, como Kiwanuka ou aquela obra-prima da década The Dreaming Room não são ingleses, de soul, ou setentistas, são documentos e inspirações da futura Nigéria, do futuro Quênia, das histórias que ali se fundam e se comunicam conosco aqui, em 2019.

20. Nick Sanders Trio :: Playtime 2050

Este disco é citado nas posições 28, 22 e 14.

19. Tamaryn :: Dreaming The Dark

Laboratório :: Laboratorial é a condição de tudo o que vem sendo feito e pensado agora, e diante do que o mundo se põe em espera.

A própria espera, diferentemente do que seria previsto, é ela mesma um composto ativo, uma imaginação convertida em substância potencializadora a ser armazenada no laboratório, bem como as cepas antigas, os materiais laboratoriais defasados. A espera é a excitação com a possibilidade das novas floras terrestres, dos novos meteoros.

O laboratório é o estrado da próxima-realidade, a estação de alocação de um químico fenomenal ao qual alguns cientistas têm acesso, ao mesmo tempo em que o reformulam continuamente. A vacina é laboratorial, a cura é laboratorial, e a música laboratorial — notadamente Dreaming The Dark e também trabalhos como Æ (citado abaixo) e Ventura (mais acima)— vai no mesmo sentido.

18. Pixies :: Beneath the Eyrie

Indústria :: Industrialização, definição clássica, é a um conjunto de instalações, ramificações, e organizações de processos de produção. Esses processos visam a originação de artigos impermanentes, com alguma ou nenhuma exclusividade, que serão vendidos e distribuídos como bens de consumo e como peças para abastecimento ou preparação de novos processos industriais.

Pra mim, industrialização é uma forma de benefício à humanidade. Vejo cada fenômeno do desenvolvimento técnico naquilo que seria sua vocação máxima.

Vejo então industrialização portanto mais como uma industrialização possível do que como uma industrialização estanque, conceitual, clássica. Vejo industrialização como a gravação no mundo de um novo ser.

Industrialização é um modo-de-inspiração, e é também a gravação de outros modos-de-inspiração, que por sua vez instilam a mecânica do mesmo processo que os antecedeu em outras mentes, criando um maquinário meta-industrial invisível, potente e transmissível. Industrialização é a alimentação tecnológica de um sistema que se destina à criação de riquezas imateriais, inexatas, contagiosas e imensuráveis (ainda que sua representação mínima material: um CDr escroto e bonito, pintado com cera, por exemplo, exista também e seja uma marca perfeitamente coletável e admirável desse processo de industrialização existencial). É Only The Blues (citado mais acima).

Industrialização é refinamento e diversificação de modos de felicidade humana. A história da música é essa industrialização.

Industrializar é também instalar um maquinário no seu quintal — sendo ele físico ou metafísico — e criar versões derivadas de um vislumbre original, derivadas de uma inspiração industrial e tecnológica, e distribuir para os próximos (para uma casta) o que nasce disso, em estilo de contágio epidêmico. Indústria é uma questão de confeccionar CDr e fazer existir. Gravar, acionar, contaminar com o que é pessoal e emocional.

Os Pixies como banda industrial, como modo-de-industrialização, expansão, envenenamento e contaminação de sonoridades “caseiras” com o propósito de deixar a galera feliz, o que sempre quiseram ser, são revelados assim cerca de 35 anos depois de começarem. O projeto industrial Pixies começa agora, com eles gordos e caídos. Industrialização é aliás decadência.

JPEGMAFIA em All My Heroes Are Cornballs (que quase esteve na lista), seguindo um tipo de escritura do quintal — ou do pós-quintal — não muito distante, é o desbunde e a perdição industrial. É a indústria perdendo o controle de si mesma e se tornando cristal tecnológico de uma nova indústria, dessa nova indústria da felicidade e da perda do propósito tradicional.

Este disco também é citado na posição 5.

17. Bushman’s Revenge :: Et Hån Mot Overklassen

Língua da pandemia :: Crescem em São Paulo na epidemia as plantas, as cores, o próprio asfalto se torna uma curiosa forma de raiz. Os lixos a céu aberto e empilhados nas caçambas também: tornam-se obras de arte porque isoladas e à vista do contemplador interessado, sem pessoas caminhando por perto e censurando a vista de alguma maneira. Isso é uma rotação nova de mundo.

São Paulo virou uma terra estrangeira, e na verdade também outro planeta. A viagem interplanetária é um ritmo diferente que esvazia as ruas e metamorfoseia os objetos da cidade, tornando-os obras de outra espécie. São paulo faz germinar, nesses tempos, um novo estilo de olhar, que é proveniente do desenho que a cidade adquire sem nada circulando. O vazio não é vazio, mas é a clareza, o revelar de uma instalação prévia e esquisita.

A epidemia é pintura de exceção (pode arriscar: de vanguarda) tendo cidade como corpo arquitetônico mutável no centro. É uma pintura cujo alfabeto para expressá-la está em construção, junto com a própria reconstrução da consciência contra a ordem maníaca e contra a produtividade estéril.

São os discos “São Paulo de pandemia” os que nos colocam diante de um novo alfabeto musical — abandonado, tombado pelas circunstâncias, redescoberto — que é também humano e radical (contempla a raiz da criação da cidade). Há esses lugares do tempo amortecido e mórfico, Igor, Et Hån Mot Overklassen (Igor mais abaixo no texto), This Land Abounds With Life, Radiante, Festina Lente (todos mais acima) e não apenas esses, visitando-nos através de um alfabeto pandêmico, modulante, de abertura contínua. Este escrito rascunhado no começo de abril de 2020 ainda se mantém vivo para mim.

Perca-se na música publicada acima. É uma aventura longa de Gard Nilssen & seus amigos, uma que se mostra sua exuberância bem aos poucos.

16. Elliot Galvin :: Modern Times

Fala :: Aprender a fala é aprender a redesenhar o mundo aos poucos, desde o interior, e através de uma sequência de esboços, bricolagens atípicas, semânticas mórficas: de pensar em pensar, de sentença em sentença, de fabulação em fabulação. Este Modern Times é um disco tanto da fala, do aprendizado de uma fala, quanto da fala genuína do mundo: o impossível que se move solto e regenera. Jazz é no fundo exercício dessa fala.

15. sir Was :: Holding On To A Dream

Este disco é citado na posição 10.

14. Eivind Austad Trio :: Northbound

Jazz biodinâmico :: Uma música da primazia orgânica e da possibilidade existencial, é o que o jazz realmente é. O jazz em seu melhor, em sua encarnação como composição encantada, é uma música da biologia humana e da biomágica dos instrumentos de madeira processada e modificada; é uma música dos trajetos interiores do organismo humano e dos grandes ânimos. Uma biomúsica existencial.

No grande jazz, a música muda e move-se em certa simultaneidade estimulante às mudanças ocorridas dentro de nós, mudanças cerebrais, mentais, espirituais, mudanças nos humores, na densidade e na fluidez dos pensamentos. Na organização das nossas células. É uma biodinâmica humana o que propõe certa música no campo do jazz — principalmente no jazz-cinemático do Norte.

Na medida em que os mistérios e harmonias se reelaboram e se deslocam nas peças de discos como Festina Lente, Art in Motion, Moving Forward, Radiance, Sanctuary, Mortality, Playtime 2050 (todos esses mais acima no texto) e este grande Northbound, encontramos uma outra forma interna, na expansão, nos abalos e nos tremores que essas composições instilam em nós. É um diálogo dos mais importantes possíveis na arte: os compositores e o universo visceral que nos habita.

Este disco também é citado nas posições 45, 37, 22 e 8.

13. Anton Eger :: Æ

Estratégia anfíbia :: A musicalidade anfíbia seria uma em que são propostas duas fases. Não seriam fases ambientais, como terra e água, margem e lago, com sentidos musicais telúricos ou aquáticos. A criação musical anfíbia, a prática anfíbia, é uma que alterna a fábula com os segredos da cidade cotidiana. Ou um mundo subjetivo encantado com uma capacidade de projetá-lo em concreto, cedê-lo a alguém interessado em fazer parte.

A musicalidade anfíbia também se caracteriza pela analogia a um tipo específico de ser, um ser que visita a música, é e encarna, de certa maneira, em uma determinada cepa de música. É o vizinho dos dinossauros adaptado, o noturno e fugidio habitante das profundezas históricas que chega ao nosso próprio mundo contando sobre um outro planeta Terra, uma outra encarnação e versão dessa história planetária, animal e biológica. A musicalidade anfíbia refere-se a uma estranha aparição dessa forma peculiar, antiga e semi-alienígena. A estratégia anfíbia, clara em obras cavernosas e místicas como Æ e Both-And (aparece mais abaixo no texto), é nos conduzir ao novo que é o antigo, e que é místico porque nos religa ao que está em nossa casa, ao nosso alcance.

Este disco é citado também na posição 19.

12. Hvalfugl :: Som En Faldskærm

Colônia e artesãos :: Colonizar é impor um jeito de fazer casas. A colonização pode ser violenta, como prova-se na história, e pode, menos frequentemente (talvez apenas com a força do sonho), ser como uma benção. Um povo inesperado aporta e com ele chegam as primeiras construções de um certo molde que vão servir, de fato, como habitações. A música como a chegada desse povo inesperado e todo o período de construção é o que falam discos como Voyage, Farkost (esses mais abaixo no texto) e Som En Faldskærm.

Quando penso em colonização penso também nos caminhos, nas estradas singradas e nas casas. Em seu artesanato. Artesanato não é um meio de retorno ao rústico, mas um conjunto de intenções e ferramentas que permitem acesso a um mundo virgem, de clareza paisagística. Um mundo também de esconderijos, das casas abandonadas, e das viagens do passado que se repetem no futuro, seja como novas expedições, seja como imaginações irrigantes.

Obras como Som En Faldskærm são essas embarcações mais artesanais, “o carro grande da família” ou mesmo o ônibus Cometa que te leva sem a família a localidades da infância, que agora serão outras, e a esses mundos virgens, das novas nostalgias. Uma grande engenharia artesanal de devires sentimentais fluidos e densos ao mesmo tempo.

11. Pavo Pavo :: Mystery Hour

Petroalquímicos :: Os pólos não são apenas gélidos, ou industriais ou petroquímicos. Esses são alguns dos pólos. Há os pólos também no seguinte sentido: pólos como quaisquer extremidades que se contrapõem a outras, com suas faunas e ambientes.

Existem também pólos enquanto produtores e transformadores de elementos que habitam o mundo sentimental humano: pólos enquanto zonas produtoras de transportes sentimentais inusitados. Há esses pólos, talvez análogos aos petroquímicos, em que são produzidas e meticulosamente alteradas matérias fósseis estranhas, sons, matrizes sonoras, ideias arcaicas (antigas, soterradas), partículas pertencentes às malhas de sensibilidades pessoais. São matérias que se fundem de forma manipulada mas imprevisível a outras, criando combustível para uma nova frota inusitada — uma frota de transportes abstratos que levam a empreitadas por mundos possíveis prestes a se concretizar.

E existem esses discos que são nitidamente pólos mágicos de construção de veículos, de extração & fabricação de petróleo de outra classe para viagens e conhecimento de zonas emocionais acessáveis. Mystery Hour é um vinil carnavalesco gerado do petróleo, mas fabricante ele mesmo de um petroalquimia exploratória. Em boa parte por nos carregar ao mundo das abstrações e paisagens do dial americano automobilístico de 1979 recriado em 2029, pertence aos pólos mágicos, é um cativo desses pólos como Bubba, Raft In Placidity e Peaceful King (citados mais acima no texto).

Este disco também é citado na posição 43.

10. Chris Cohen :: Chris Cohen

Mobilidade :: Toda grande música é transporte geográfico e geoarqueológico. Por exemplo, a música de Beto Guedes, Toninho Horta, Tavinho Moura e Lô Borges no fim dos anos 70, o auge da grande música brasileira, pode ser compreendida como uma bem aventurada implantação de Montes Claros ou Diamantina, cidades do interior mineiro, no centro rural da Inglaterra, ou mesmo na Londres de 1975.

Há casos também de transporte e deslocamento planetário: por exemplo, fazer a Terra — o planeta — de 2240 manifestar-se em rascunho, em vislumbre, em esboço espiritual, na Terra de 2019 (o ano parado, o ano agora, uma vez que 2020 não é um ano em si, e sim um artefato escultural a se admirar). sir Was — esse sueco que em seu novo disco, Holding On To A Dream (disco aparece acima), é uma espécie de Peter Gabriel do Bronx anos 90 vivendo dentro de Wind and Wuthering — , assim como o grande Luke Temple (Both-And, citado abaixo), talvez o gênio maior da música norte-americana, são viajantes de várias versões da Terra. As que estão por se realizar e as que jamais se realizaram nem se realizarão.

Ninguém no entanto é mais viajante das versões da Terra na música “pop” do que Chris Cohen. No disco sem nome deste ano se faz mais do que nunca homem da Costa Oeste mística. Um fantasma do rádio. Um controlador de emissão de frequências de uma geografia ultrapassada que pode ser também (aliás, é claramente) a Belo Horizonte mística.

Cancioneiro de verdade (pode chamar de pop mesmo) nunca foi brincadeira. Nunca foi culto primitivo nem parte da economia e de suas cognições intrínsecas.

9. Tyler, The Creator :: Igor

O que é música :: Música não é uma arte de sentidos expressos, ditos, de civilização narrada, signos e histórias, música é uma arte de iniciação, e iniciação é aprofundamento no improvável.

Música é também um fenômeno tecnológico-industrial de emancipação humana que começa na recombinação de quartzos alienígenas chamados sons e termina na condensação musical dessas formas, e na absorção e tradução inverbal desses elementos nos aquíferos humanos — ali onde vivemos de fato, nosso mundo-de-coisas e vida.

Igor, assim como Peaceful King (mencionado mais acima), parece ser um disco que resume e narra esse processo, muito porque o que propõe é um processo vagaroso de consolidação de elementos musicais estranhos dentro de nós, no diâmetro desses nossos aquíferos. Um disco de iniciação.

A propósito, voltando à ideia de início desta publicação, dos países, uma coisa interessante a ser apreendida sobre o disco de música Igor, e essa informação permite que se abra um caminho vasto de habitação e sondagem no disco, é que ele foi gravado na Inglaterra mais ou menos entre os anos de 1975 e 1978. Eu cheguei a explicar para um amigo ancião a música de Tyler, The Creator: “Lembra quando o Brian Wilson começou a fazer umas coisas que não eram mais rock, que todo mundo achou que eram de droga, mas eram mesmo a verdadeira música clássica… Só que parece um pouco o National Heatlh negro às vezes também, quer dizer, é uma vontade considerável de nova música clássica e nova música-música, e no meio da realização dessa vontade ele acaba chegando em químicas parecidas, e nas químicas que os grandes do rap sempre quiseram sintetizar”.

Este disco também é citado na posição 17.

8. Hullyboo :: Farkost

Paiol e alvenaria :: Das regras do grande jazz: se a bateria não for ar batendo no paiol das memórias de campo, não é bateria. Este outro disco de fabula da Noruega é o jazz norueguês enquanto construção perene desse paiol. Uma alvenaria rústica que comporta uma nostalgia em reverso, aquela que transpira os ares da infância remota, mas nos localiza e instala num vigor do momento.

Aliás, cabe um complemento sobre a validade do termo jazz.

Sempre penso sobre essa tentativa do jazzista escandinavo conversar com a América do Norte branca e com o jazz americano branco (Pat Metheny Group), com o fusion notadamente, um movimento que cresceu e foi refinado justamente na Escandinávia entre 1975 e 1980, através de bandas obscuras e selos locais dos mais interessantes.

Alguém com maior sede de tese de doutorado cultural diria que está é uma não-viagem, uma não-adesão, um não-filiar-se ao jazz mesmo, que seria o jazz dos campos harmônicos minados, da aventura angular atonal e do retorno rítmico à África. Diria esse doutorando também que esse jazz feito no Norte da Europa é um refúgio entre iguais, com afinidades geográficas e afetivas, religiosas e ritualísticas. Diria também, possivelmente, que estaria diante de um jazz cristão.

Eu poderia dizer no entanto que esse “jazz” das montanhas, das florestas e dos golfos sinuosos de taiga tem mais a ver mesmo com um filiar-se-totalmente ao jazz, de maneira mais densa do que seria uma interlocução tribal com um suposto jazz das Escrituras.

Jazz é a caça ao insondável e ao espírito da rua. E é o que eles fazem em suas próprias aldeias. Jazz é também o artesanato das miragens locais.

Gard Nilssen (a banda e o baterista, citados mais abaixo), com To Whom Who Buys a Record, diferente de um Eivind Austad (citado mais acima no texto), com Northbound, de um Hullyboo, promove um tour pelas Áfricas escondidas. Torna-se um local desse tipo de ficção que o faz habitante de aldeias que não suas. Herskedal (citado abaixo no texto com seu Voyage) e Hullyboo são tradutores espirituais da aldeia e de suas fantasias mais envolventes. Escrevem as novas escrituras do jazz , pois o fazem diretamente do lugar que mais se interessa, absorve, naturaliza e aprofunda o jazz no planeta.

Este disco também é citado nas posições 37 e 12.

7. Arifa :: Secret Poetry

Dialética no jazz :: Jazz não é uma matemática transversal, uma variação inusitada da trigonometria, uma matemática das partituras, dos climas e das intensidades, mas uma pesquisa dinâmica (pesquisa: encontro e transformação de vozes perdidas numa dimensão fantasma), e uma exploração, aí sim, por climas e intensidades, construídos fundamentalmente a partir de ideias de composição, a partir de uma gramática do deslumbramento.

Essa pesquisa tem como objetivo último estabelecer entre ouvinte e a música (a que está tocando; e a música em si, a coisa da música) um laço no qual o primeiro propõe-se a crer em um mundo desconhecido, e o segundo (a música) altera-se tantas forem as ações de aventura e desbravamento do ouvinte em suas bacias e continentes mutáveis.

Secret Poetry é ilustração comovente desse desmembramento, do desenvolvimento desse laço, assim como Aubes Et Crépuscules (logo abaixo no texto), Festina Lente (mencionado acima no texto) também são. Secret Poetry é a manifestação desse jogo com o clarinete e o piano atuando como tecelões de tramas entre as árvores e histórias secretas do coração da Europa, tramas que se adensam conforme o tempo e a intensidade da pesquisa sentimental do ouvinte.

6. Awake :: Aubes Et Crépuscules

Este disco é citado nas posições 28, 22 e 7.

5. Office Culture :: A Life Of Crime

Cidade cinematográfica :: O carro é signo da liberdade no Ocidente, assim como era o cavalo uns séculos antes. Não vou aprofundar o fato do carro revelar-se mais eloquentemente como veículo de uma falsa liberdade e agente de adoecimento pessoal e urbano, nem o fato do cavalo ter sido montaria para uma liberdade comercial e muitas vezes assassina acima de tudo. Vou permanecer na ideia basilar: a bicicleta, nas ruas desertas de São Paulo na pandemia, sem muitos riscos e obstáculos, é comparável a um cavalo urbano.

Um cavalo no silêncio de montanhas que foram asfaltadas e que agora estão dominadas por um novo tipo de índio: o andarilho, que volta a recolonizar a sua cidade por direito (é ela que o escuta ao dormir, é ele que a escuta ao dormir).

A bicicleta é também um outro tipo de animal, um de feitio mais épico e fabular e menos dócil. Ela é um dragão que atormenta a normalidade do feudo, que incomoda talvez porque, ainda que frágil, simbolize uma liberdade-em-meio-ao-caos-total. É um dragão que, diferentemente do cavalo, possui um instinto único para os caminhos secretos e luminosos, para as cavernas.

A bicicleta é o anti-carro. É o veículo da verdadeira liberdade humana. Discos de bicicleta são aqueles que se acomodam melhor nessas cavernas urbanas das duas da manhã.

São discos que “passam”, como se fossem narrativas secretas da cidade, são discos que se resolvem como correntes cinemáticas fluentes nessas circunstâncias.

A Life Of Crime, essa utopia oitentista televisiva, televisionada nos EUA, é basicamente disco de bicicleta.

A Life Of Crime, como I Did The Best I Could, a outra obra-prima da banda nova-iorquina, é um desfile neoromântico de entulhos e descartes dos quintais sentimentais americanos, objetos reciclados que então tornam-se artefatos de religação afetiva com a cidade. Uma fantasia ativada pelo movimento cíclico na cidade não muito diferente do que se manifesta em Both-And (citado mais abaixo no texto).

No caso da obra (os dois discos juntos) do Office Culture tudo parece lixo americano reciclado por uma estrutura de maravilhamento. Em Reach Out (citado mais acima) temos algo assim também. Tudo parece televisionado, antes de mais nada; e tudo parece orquestra de garagem amarrando os grandes e ordinários afetos. As coisas parecem sair de alguma crônica humana norte-americana de grande duração e longo impacto, como Six-Feet Under. Como disco de radar-da-cultura, revela-se muito maior e das coisas mais bonitas acontecendo na música de agora.

Este disco também é citado na posição 43.

4. Daniel Herskedal :: Voyage

Vida dos fiordes e além :: O melhor da música nórdica é uma pesquisa pelos pedaços da natureza diversa dos locais possíveis, compreendendo aqui o que significa pesquisa: acúmulo de vozes dos fantasmas pertencentes aos lugares.

Mortality (citado acima no texto), mas principalmente Voyage manifesta-se como um estudo ecoelétrico e náutico pelas formas que nascem, envelhecem e apodrecem nos fiordes.

Do gelo, dos gêneros de plantio nativos e dessa vontade de musicar países nasce uma corrente eletrossentimental e metaecológica (ecologia como forma e inspiração transmitidas por inspirações ecológicas) que se projeta magicamente dos fones e das caixas para nosso ambiente, de modo que as vozes migram e crescem em outro lugar, o nosso. Perpetuam-se.

Essa corrente divide-se e espalha-se como sementes para novas vidas na música, novas viagens pelos territórios entranhados nesses músicos como o pianista Eyolf Dale e o tubista Herskedal.

Ainda no núcleo do que esse disco substancialmente fabular nos comunica, não canso de pensar na vida aquática como uma extensão da vida musical.

Distribuídas e construídas no mundo marinho e aquático não estão apenas as geologias que conhecemos e foram catalogadas. Há ali também as que ainda pertencem ao horizonte científico do conhecimento. Não moram ali apenas as morsas, lontras e peixes coletados e avistados. Há os animais que ainda vamos encontrar. Os jumbos que são as baleias não se locomovem apenas para ilhas que conhecemos, mas também para outras, com biomas que ainda nos são estrangeiros, são apenas imagináveis.

O mundo marinho, aquático, náutico é um mundo em segredo, de transporte, perigo e nutrientes que brotam como exuberâncias alienígenas; um mundo que não posso entender como um que não tenha sido gerado pelas primeiras músicas da Terra.

Quando as novas músicas da Terra chegaram, vieram para continuar, à sua maneira, a concepção e a transmissão desses submundos repletos. Cada disco, ruim ou bom, é uma parte desse mundo. E existem os discos que nos fazem lembrar dele como outros poucos, e nos fazem lembrar do mais encantador e bonito de sua fauna e de sua vida. Fazem-nos também submergir em uma rotina hidrooínirica de averiguação e pesquisa especial. Voyage é um desses. Assim como Reflection, Radiance (citados acima no texto) e quem sabe alguns outros.

Este disco também é citado nas posições 45, 37, 12 e 8.

3. La La Lars :: La La Lars II

Blues :: Talvez o blues enquanto gênero (falo aqui da música blues, o blues em si, aquele blues que você conhece, que está na sua mente agorinha, o blues da simbologia) não faça justiça ao fantasma do blues: ou seja, ao que o blues seria realmente — fora da música curricular blues — e que não prevalece e se expressa somente na minha imaginação, mas numa certa música não-formalmente blues que paira por aí.

O blues, esse do fantasma — que nada mais é do que uma estética além da estética, uma estética-além — seria uma oferenda sentimental. O blues, ele realmente, seria e só poderia ser um jogo de tensões sobre o pavimento da ordem. O blues seria a Mocidade Independente de Padre Miguel barroco-progressiva de 2018 (no maior momento musical brasileiro do século). E seria uma prova de amor dos homens ao mundo e suas complexas ordenações. Uma forma de recriar e inventar a complexidade na ordenação do mundo. Ou seja, seria a antítese de uma arte que se põe a recuperar, com o manual simbológico, certa ordenação restaurada sob uma arcada de complexidades paralíticas.

Blues seria o ato de existir em música. Contemplar existindo. Um ato antagônico à dormência das catedrais erguidas sobre os corpos esquecidos, as imaginações aprisionadas. Blues são os corpos vagando pelos esqueletos, agora sim devidamente musicados, das catedrais mortas. Blues é o Dungen, blues é o La La Lars neste impressionante segundo disco.

2. Gard Nilssen Acoustic Unity :: To Whom Who Buys a Record

Existe música :: Muita coisa soa inacreditável no trio norueguês, em sua música, em seu novo disco, esse desafio sessentista de reconexão\dissolução de climas, tessituras e jeitos de compor. Por exemplo, como pegar o modo clássico do jazz moderno, a escritura conhecida, a gramática sagrada, e esticá-la, derretê-la, entortá-la de tal forma que ela permaneça reconhecível, mas sendo não mais a mesma? O que existe no disco de Gard Nilssen com os mágicos André Roligheten e Petter Eldh é exatamente a retorção de uma tradição de maneira a entendermos que cada tradição existe potencialmente para não ser mais a mesma amanhã, e assim não deixar que sejamos os mesmos.

Uma grande parte do que se convencionou chamar de free jazz 60 anos atrás, e de jazz atonal mais recentemente, não é exatamente a retorção da tradição e de sua caligrafia sã. É, antes, seu eco de reação, sua antítese planejada. É seu retorno como praga, não mais como santidade.

Neste disco absurdo do trio norueguês temos uma nova saga. Algo que se move além e acima de praga e santidade, conquanto o que exista aqui seja fruto dialético da praga e da santidade: a emancipação dialógica dessas duas instâncias. Assistimos à tradição retornando, como poucas vezes antes, ao leito da vida, à alvorada formal que define não mais a tradição em si, a escritura antiga que a tudo parece preceder, mas a música em sentido pleno: um encontro com a vida. Nesse encontro, o que toma forma é um disco que antes de tudo é uma homenagem à existência da música na Terra.

Atonalismo — no jazz, em qualquer lugar ou campo de música do planeta— não é um sistema de criação, e tampouco é uma doença de espírito. É uma doença de escrita. A escrita musical é dialética movediça. É obra das sutilezas. Atonalismo é negação a essa escrita. Assim como a tradição, em sua versão pura e sã, também o é. Fica essa como uma lição secundária do álbum do trio.

Este disco também é citado na posição 8.

1. Luke Temple :: Both-And

Luke Temple :: O rock é um planeta de solidão, e portanto de imensa fauna e de imensa alegria. Ninguém fez rock — ou seja, não o gênero exatamente, mas esse planeta — assim. Ninguém construiu esse planeta como Luke Temple, o maior músico e o maior compositor norte-americano de sempre, o construiu. O Luke Temple não é exatamente o estudioso de uma eletricidade heterodoxa e restauradora do ser, essa que seria (também) o rock. Ele é o ser escondido na história para quem a história confeccionou essa força, manipulada por ele como a selva é manipulada pelas grandes panteras. Luke Temple é um território. Um enclave em que a música é a mais ambiciosa, mutante (mesmo parecendo constante) e emocionante das formas.

Este disco também é citado nas posições 32, 13, 10 e 5.

Leia o trabalho musical anterior. E também o do ano retrasado. Ajude-me a viver só de ficar pesquisando disco.

Toda a arte presente neste estudo é de minha autoria e surgiu para que eu pudesse homenagear a música que me fez companhia por tanto tempo.

*******************************************************************

--

--

Um Mundo de Música

Investigações na arte, micropesquisas diversas e coisas escritas por Claudio Szynkier. Mais sobre mim aqui https://ummundodemusica.medium.com/about