Clássico

Um Mundo de Música
4 min readNov 25, 2019

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A língua ascendente no Brasil é uma variação do formalismo débil das “grandes obras do passado”

Georg Baselitz

A cafonalha oficial do regime tem essa coisa com os clássicos, porque os clássicos “superam o tempo”, não “envelhecem”, permanecem “além das ruínas”.

A verdade é que existe uma gramática a definir e a situar-se internamente a esses clássicos exaltados pelos departamentos do regime. Essa gramática é a da poesia-em-código já destravada e absorvida pelo seu avô, ou por você mesmo — se você vive em densidade a arte — antes mesmo de se dar conta desse destravamento e dessa absorção. O humano que habita a Terra hoje não é o mesmo, nem em termos ontológicos e nem biologicamente, e as possibilidades de criação e comunicação humana também não são. A criação humana libertou-se das maneiras arcaicas de ver, falar e sentir mais ou menos 120 anos atrás, quando a arte foi verdadeiramente fecundada e permitida a sair das prisões formais (exemplo: música como coisa morta a reproduzir, com certos gestos e epidermes sonoras estabelecidas, um determinado “fato”, uma “estação” ou “sentimento histórico”).

A desses clássicos da nova era é uma gramática do símbolo, o símbolo sendo esse condicionante retórico, essa matéria linguística aplicável ao mundo da cultura e das coisas exteriores, mas inadaptável e incapaz de existir no mundo das texturas e potências misteriosas; no mundo esculpido pelas intuições e construções sensíveis. O símbolo é uma espécie de corrupção essencial da arte. É uma linguagem corrente na escola técnica da “sensibilidade”, onde são aperfeiçoados os mecanismos de perpetuação de um fenômeno chamado “Capital”, que é não outra coisa além do antigo pacto a tentar lotear, governar e infertilizar cada lugar onde exista vida. O símbolo-fechado (o que ele sempre é), além de memorial do capitalismo, além de ser A direita (por isso “não existe arte de direita”), é essa coisa que você não encontra exposta por exemplo nessa apresentação, nessa criação musical.

(e nem no Blues Brasileiro)

(e nem aqui, onde não sei qual era o nível exato de consciência desses alemãezinhos; se sabiam que estavam testemunhando nada menos do que o nascer da música)

O símbolo é feito para o gabinete, e as grandes criações são para o mundo da vida; são a fratura da fratura original que o símbolo sofreu. E são sobretudo fenômenos sísmicos, abalos no ambiente conhecido. As grandes criações são as eternas novas fantasias.

Impermeável à arte, o exército de complexados que sustenta o necroconservadorismo brasileiro começou a ser gerado num colapso da FALA. Essas pessoas, quebradas por ausências irresolvíveis, não sabendo falar, e portanto não sabendo o que é fala, têm no símbolo uma estância segura e terapêutica.

É lá que os cindidos da fala, de sua musicalidade intrínseca, de sua vocação para o provisório, de suas propriedades criativas e da envergadura de seus segredos, vão encontrar a garantia de que existem, de que afinal “falam”. O símbolo, e consequentemente o “clássico” cultural, a obra sistematizável por uma grade atemporal de pensares e intentos esterilizantes, é um abrigo confiável para toda sorte de não-falar e para todos os seres marcados pelo não-falar. Como essas pessoas, os “clássicos”, as “obras da permanência” e seus correlatos reencarnados sempre foram oficiais, coisa que a arte nunca será: não será em espírito e no arranjo de suas harmonias cuja origem não é linguística, mas a constelação de ecos das experiências radicias da existência. A arte e a fala rejeitam o símbolo terapêutico e as cifragens culturais compartilhadas por gente enfadonha e com propensão ao abuso.

Esses clássicos da cafonalha oficial formam em conjunto um supletivo avançado para pessoas com trauma intelectual e biográfico profundo, uma ferida que é agravada por obstrução cognitiva e imaginativa nível Wesley Safadão. Diante do que entende-se que os “clássicos” (os clássicos do olavismo, os cânones empedernidos e métodos funerários de olhar do Estado da Arte) na verdade SOBREVIVEM como única região do criar que essa gente entende, único lugar ao qual a Nova Era tem acesso. Superam, antes de tudo, RUÍNAS mentais. Os clássicos são a fração que todo idiota consegue tocar na fortuna da criação humana. Não deixa de ser essa uma espécie de permanência.

Neofascismo (entenda-se: todos que formam o enredo da psicopatocracia Nova Era) é o Estado moldado como aliviador de complexos, e funcionando para converter a energia confusa do enrustimento (todo partícipe dessa farsa é antes de tudo um enrustido) em força para (nova) escravização dos que jamais se libertaram. É o Estado reformado já como anti-Estado. Os “clássicos” são uma espécie de manual motivacional e um espelho de intenções para a empreitada.

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Um Mundo de Música

Investigações na arte, micropesquisas diversas e coisas escritas por Claudio Szynkier. Mais sobre mim aqui https://ummundodemusica.medium.com/about