Os Episódios Improváveis

Um Mundo de Música
64 min readApr 16, 2019

--

Um estudo em 43 momentos sobre os fenômenos musicais do agora e de sempre; os 40 maiores discos de 2018

Anselm Kiefer: “Winter Landscape”

As Jazidas Concorridas & Uma Hidrogeologia Vital

Há duas vontades a orientar a existência das obras musicais, e aqui o certo seria falar mais das “obras fonográficas”, antes do complemento “musicais”, em um primeiro momento pelo menos.

Uma é vontade visível, a outra menos. Vou chamá-las de forças. A primeira força, visível, é a da produção, a que desemboca inevitavelmente na indústria. Uma gama de opções ampla e mais ou menos planificada a satisfazer as necessidades cotidianas (existenciais, mas não só) por música.

A segunda é a que nos importa aqui, e é aquela que importa no final das contas para a arte mesmo.

É a vontade de desmantelamento da primeira força, em síntese a vontade oculta de anulação da indústria, e ascensão, no lugar dessa, de uma orquestração polifônica desorganizada, mas perfeitamente harmônica em sua multiplicidade. Uma versatilidade a temperar e iluminar todas as regiões da existência e do planeta — cada uma pedindo esforço e calibragem específicos — , uma variedade das potências criadoras e existenciais com capacidade de musicar.

Nenhuma dessas forças — a da indústria e a que conspira pelo seu desabamento através da primazia de um ‘Dasein Musical’ preponderante e variado — vai “ganhar” ou vai se estabelecer de forma exclusiva, pois ambas constituem-se como membros de uma dialética perpétua e necessariamente sincronizada, na qual ambos os frontes vão se amoldando, se alterando e cedendo em um longo percurso de mutabilidades.

Max Pollak: “Guatemala, Volcano of San Pedro”

Faltou uma definição que é fundamental, e se tornará mais ainda à medida que o texto, não apenas o de abertura, progrida. Dasein Musical é a vida transportada à região em que residem as importâncias vitais musicadas. É a vida trasladada ao continente das musicalidades majestosas, assombrosas e versáteis — isto é, capazes de conduzir a passagens múltiplas, antes não previstas — em seu registro; é a vida guiada ao continente da libertação humana através da música desconcertante e jardinada pela ação de transfiguração, de transportamento de faunas entre mundos longínquos, esse sendo um movimento coordenado pela mão humana, pela capacidade humana de recomposição das maravilhas encrustadas nos pavilhões geológicos, nas pedras, nos cascalhos.

O choque entre visível e invisível, Dasein e indústria portanto, implica uma corrida mineral e uma disputa pelo poder em uma cratera, um sistema de cavidades infinito que fornece as matérias a serem refinadas e transformadas. Essa cratera é uma estância que pode ajudar a compreender melhor o que é o “mundo musical” (não o “mundo de música”, que é a própria terra).

A longa escavação é uma competição entre invisível (o Dasein Musical) e a indústria. Essa competição originou túneis que se comunicam, que acabam se interligando, e que às vezes têm rotas bloqueadas e depois liberadas pela transgressão de um vândalo qualquer — um vândalo quase que necessariamente contratado pelas forças do invisível. O mundo musical é um mundo da mineração que ocorre longe da vizinhança, mas se espalha para dentro das nossas moradias e dessas para as moradas internas.

Nessa eterna batalha mineradora, há um bloco e um logotipo da indústria, com suas máquinas, sempre se atualizando, grilando parques inteiros de sondagem secreta e absorvendo o que foi encontrado em escavações originais (as do experimento no Dasein); pagando cientistas do outro lado para passarem para o seu e contrabandear informações, esboçando ele mesmo, esse bloco industrial, ‘empreendimentos escavatórios’ que são, ao final, travados pela falta de qualidade na perfuração, por acidentes que ocorrem em solos esgotados.

E há o bloco da mineração de risco. O bloco que não apenas se arrisca nas profundezas das jazidas, mas ativa a exploração e a exposição das maravilhas do “centro” da criação, maravilhas do próprio núcleo da terra. É uma mineração, nesse caso, com um pouco de oceanografia. Com uma dose de arte oceanográfica. Ali, os mineradores fendem paredes que guardam um horizonte oculto do mundo marinho. Lançam-se em trajetos que revelam enseadas proibidas, povoadas por criaturas muito parecidas com peixes. Conhecem ravinas que servem como domicílio a corpos marinhos transparentes e misteriosos, a águas descobertas pela primeira vez e liberadas a irrigar o mundo em si e o nosso próprio mundo, aquele que estamos sempre mapeando e remapeando. O mundo das nossas grandes emoções.

É questão de tempo, sempre, até a mineradora com menos talhamento nos segredos da arqueologia futura, mas mais arguta, conseguir com que os descobrimentos baldeiem-se para suas instalações.

É questão de tempo até a mineradora dos segredos realojar as peripécias industriais em seus túneis intermináveis, permitindo-as metamorfoses antes improváveis (a mineradora do invisível também é arguta nos sequestros). E tudo começa de novo. Eis uma das grandes dialéticas. E a dialética que, quando reesculpida em seus significados, quando imaginada (não lida, entendida, mas imaginada mesmo) exprime e descreve o que está acontecendo com a música do momento, a música sobre a qual falo aqui nesse arquipélago de textos.

Frank Auerbach: “Summer Building Site”

Vamos aos discos que me impressionaram:

40. Anderson.Paak :: Oxnard

A África pode ser vista de algumas formas diferentes, uma delas é como motor de propulsão e difusão de pequenas centelhas. Um continente a pulverizar fertilizantes, ‘entidades do fulgor’, que então acabam sendo lançadas a outro continente. Isso, aliás, de fato ocorreu. É um fato do passado, da história humana. Ali, nesse outro continente, essas ‘entidades do fulgor’, que não são exatamente música, pessoas, coisas, mas tudo isso, chegaram e se amplificaram, a iluminá-lo com a cor, com a ‘nova fantasia’.

Esses ‘pequenos fenômenos da cor’ inalaram e absorveram as belezas nativas, e padeceram, resfriaram-se e depois apagaram-se. Com o padecimento, o resfriamento e o esmaecimento, dominados exatamente por essas forças negativas da constrição, essas centelhas e entidades do fulgor recuperaram carga notável de uma nova energia regenerante, que por sua vez os possibilitou continuar a reiluminar esse outro continente, numa dialética perpétua, imprecisa, irreversível e intrincada.

A África e o mundo branco, a América especificamente, numa relação de reatores mútuos da dor, da miséria e da graça: essa é uma relação reativa de entrelaçamento extremo que tem na música (na música de matriz negra) sua principal expressão e esplanada; e nesse disco um aposento de sagração, uma parada para contemplação acalmada e visceral. Um disco moldado para um desbravamento dessa dialética e de dialéticas musicais chocantes, surpreendentes (internas a cada música), que brotam da primeira e fundamental dialética: aquela que rege o mundo desde muito antes da ânsia escravagista industrial.

39. Wanja Slavin Lotus Eaters :: Salvation

A racionalidade, antes de uma prisão, é a porta para elaboração de uma viagem pelas cavidades esquecidas da experiência humana. Eu chamo essas cavidades recônditas — ou seu conjunto — de ‘estância da delicadeza’.

O jazz é um suporte, apenas, para a música. Um suporte que convida à fuga, à riqueza, mas muito do que se faz no jazz está embalsamado por um sentido de racionalidade “negativa” — o que é natural, porque o suporte, sendo seguro, tende a inspirar acomodação nos mecanismos, no supérfluo. Reincorporar o racional e importar a arte da música do ‘racional bruto’ para a encarnação de uma delicadeza luminosa, que transborde diferentes possibilidades ficcionais em feixes instrumentais, é a dimensão máxima do jazz, seu ‘transcender natural’, ainda que raro.

Quando essa delicadeza é também reincorporada como uma dinâmica fluente da banda a produzir essa radiação, estamos diante de um tipo de “cinema” em que não existe mais o hemisfério da tela e o da ‘preparação’ (autoria, direção), todas as instâncias se consubstanciaram, se reconectaram como uma. É o cinema da razão radical, da ‘estancia final’.

Wayne Thiebaud: “Green River Lands”

38. Noname :: Room 25

O projeto discográfico de Sean O’Hagan como High Llamas é recriar a América e a Europa. Redesenhar seus volumes cartográficos, e depois, a partir dessa magia desbravadora, desse “vudu” de amplitude geodésica, recompor a morfologia continental de forma definitiva. Isso seria feito através da música que vem com empréstimos longínquos, frações ultramarinas, incidentes topográficos transportados do Rio de Janeiro, da Nova Iorque suja e forrada de histórias e harmonias esquecidas, de uma America memorial californiana e exilada no paradisíaco e impossível “Havaí” (não deixe de escutar a obra-prima dos anos 90).

Esse mesmo impulso de reinvenção da América, da Europa, do mundo branco portanto, certamente está no núcleo da grande música negra dos tempos. Essa música é muitas músicas, mas o seu melhor compilado traz uma lógica dominante. É a do entalhe repleto de fissuras a dar forma aos arranjos e à escrita dos acordes. A do temperamento recurvado e flutuante que marca a mescla melódica. Esse mesmo compilado reúne e reativa os espectros e almas penadas convidados a voltar ao mundo através dos samples. Nos samples, se alojam as vozes profundas das criações musicais soterradas, presas em demolimentos, em escombros nos perímetros suburbanos da indústria fonográfica, nos “prospects” do capitalismo da música — discos perdidos, que ninguém ouviu, mas remanejados em pequenos fragmentos através da MPC, do sampler e do computador.

Essa ação estética que marca o soul e a evolução da música negra — hoje uma síntese mais ou menos definitiva entre tudo o que já aconteceu e o que estaria nos embriões dos próximos acontecimentos — é de povoamento e invasão. Essa ação fala a nós, desde a dimensão das gravidades que nascem nesses arranjos e mesclas, de uma nova América musicada, uma terra paralela, esta sim mestiça, verdadeiramente mestiça.

No centro dessa ação, há uma pulsão fundamental: a reescrita (seguida de uma reencarnação viva) do mapa espiritual americano, que é reelaborado não tanto como uma obra exclusiva e “hegemônica”, mas como um província de asilo, de rivalização, de contradição. De contradição exatamente com o quê: com a materialidade agrícola e interiorana — não com a fantasia que surge dos rincões agrícolas através dos espaços verdes alienígenas, a que aduba o Grizzly Bear; mas com o consórcio da rigidez produtiva que cresce como erva na imaginação compartilhada, e tem ramificações densas nos condados, em todas as grandes cidades que exilam negros nas senzalas de tijolos em volta das quadras de basquete moribundas.

O disco da Noname em 2018 nos relembra dessas sutilezas, desse jogo de forças, dessa escrita longeva, dessa dialética mestiça e dessa estranha conexão com outros impulsos de “infecção” à qual se segue a refundição do mundo velho. Por isso, se aproxima tão frequentemente da máquina de expansão geográfica e harmônica do High Llamas. Essa paridade nos lembra que Noname não é uma cantora, não é uma compositora americana, mas uma inventora nas profundidades musicais, nos arquipélagos inacessíveis— formações não diagramadas nos mapas — , e portanto uma arquiteta do porvir.

37. Amen Dunes :: Freedom

O que “Freedom” nos mostra é a canção encarnada de uma forma inusitada. A canção surge aqui como elemento dilatador de um quarto, a torná-lo a antessala do maior deserto do mundo.

Um deserto amigável e cujos limites são desconhecidos, mas respeitados. o quarto fornece solitude, o deserto fornece a ‘fauna espectral’ do céu aberto. A canção é a chave, mas se define, se conclui e se forma de fato no regresso desse habitante do quarto que, a cada manhã, retorna do deserto.

É um disco que também talha a aliança final entre duas dois grandes “impérios” das músicas britânica e americana: a força dos recantos dos desertos californianos e do oeste americano (recompostos na música moderna) com a força dos desertos invernais da urbanidade européia dos anos 80.

A união gera pinturas austeras de grafite, que se erguem através da escuta, da intimidade que se constitui na escuta. Os desenhos e os desertos ganham vida e concretude musical (ou seja, revelam sua musicalidade plena) mais do que nunca na firmeza, no propósito de participação, na persistência em ocupar os limites daquele “quarto”; na constância por meio da qual a imaginação e a vontade do ouvinte fundem-se à aspereza laboriosa, à secura sutilmente colorida que está sendo rabiscada e depois pintada.

Michael Andrews: “Laughter Uluru (Ayers Rock), The Cathedral I”

36. Dirty Projectors :: Lamp Lit Prose

As estações só existem como densidades humanas se há, na natureza, um encontro entre a estação e o ser humano.

Isto é, o inverno só se encontra com a presença vital e portanto com a criação humana nos descampados verdes ou nas florestas, nas praias cinzentas e opressivas um dia visitadas ou habitadas. A primavera só se torna uma estação da mesma densidade se estivermos, em outro tempo, nos mesmos parques, em volta das mesmas águas de lagos, dos mesmos “mundo hídricos” e pequenos recortes florestais.

David Lonsgtreth já havia realizado discos como este, discos capazes de encapsular forças primaveris, outonais, e sobretudo veranis. Assim como fez antes (em discos como “Bitte Orca”), Longstreth compõe antes de tudo uma casa para o ouvinte, uma propriedade afastada em uma zona litorânea que poderia estar nos estilhaços de mapa do Nordeste americano, mas também em um recanto costeiro a ser imaginado fora dali.

Da mesma forma que ocorre em sua relação com a humanidade, as estações só existem como densidades musicais se há, nas topografias misteriosas da harmonia e nas constelações de timbres e sons, um encontro entre a estação e a musicalidade- fornecendo logo depois, a partir desse miscigenamento fora do comum, a possibilidade de uma “nova estação”, uma estação reencarnada, reinventada, a abrigar o mundo íntimo humano.

Nas cápsulas de estações compostas por Longstreth, há uma evidente cromatização. Uma utopia multicromática, multiatmosférica, o que não raro, além dos passeios vistosos, ocasiona nos levar ao experimento denso do “ciclo”. David Longtreth é um cientista da ciclicidade-em-densidade, e essa é sua grande inspiração como músico — o passeio, a rota, a viagem em densidade — e o porquê de ter inscrito pactos espirituais longevos entre si e as figuras mais longínquas, como os personagens do clube da esquina (na música “Police Story”, de 2007, por exemplo). Em “Lamp Lit Prose” estamos sujeitos e vulneráveis às precipitações de cores, ao balanço das estações. as coisas estão terminando, e começando.

35. Paul White :: Rejuvenate

O fato insólito que conhecemos em “Rejuvenate” é o teclado como corpo mineral que fornece substância, fibra, existência e uma estranha translucidez aos acontecimentos próprios dos sonhos, às memórias guardadas no reservatório que lhes foi garantido; um sistema ‘diáfanônico’ (formado pelo teclado mesmo, os “instrumentos” e efeitos auxiliares que existem dentro ou perpendiculares a ele) que possibilita desenvoltura especial às tramas musicais que se põem a recriar esplanadas memoriais que repousam na alma humana.

34. Elvis Costello And The Imposters :: Look Now

Os grandes artesãos do pop, à medida que envelhecem, parecem adquirir uma mesma verve, um mesmo impulso de composição: a captura dos sons e espessuras musicais da viagem, do deslocamento pelas estradas, pelas irradiações essenciais das rodovias.

Paul Mccartney, The Zombies, Beck e agora Elvis Costello fizeram discos curiosamente muito próximos nos últimos 15 anos. À esplanada formada por “Still Got That Hunger” e “Colors” ascende esse “Look Now”.

A viagem que esses discos propõem é ao mesmo tempo a “escultura” musical de uma viagem, com suas formas expostas, cinzeladas e acessíveis, e um trajeto vivo e existencial por luminosidades extraordinárias e acolhedoras. “Nostalgia suave, pacífica” talvez seja seu revestimento mais claro.

É possível que os grandes artistas do pop, em seu envelhecimento, se tornem mais “escritores” do pop do que qualquer outra coisa. Continuam sendo compositores, músicos, mas se tornam também “escritores”.

Não por que nas músicas se destaque a força das “letras” e das “histórias cantadas”. Mas porque o impulso do grande escritor (pelo menos aquele sediado em um dos hemisférios fundamentais da escrita) é o de um explorador sazonal; um viajante e especulador eventual dos diâmetros terrestres e humanos que, em suas estiradas, reúne experiências e sonhos, os entalha e os reforma com uma nova “musicalidade” convidativa e imersiva, repleta de matizes a desabrochar num conjunto erguido com fartura e certa calmaria.

Muitos do grandes livros são pousadas, são os caminhos até as pousadas e a arquitetura invisível das pousadas. Esses discos sugerem e praticam a mesma transubstanciação — a arte se tornando estalagem existencial.

33. Sophie :: Oil of Every Pearl’s Un-Insidess

Uma descrição possível para disco da Sophie tem que reunir anotações de um passeio por rotas desconhecidas.

Quando esse disco acontece, quando irrompe como fenômeno nas películas dos fones, o que é possível encontrar: as vozes da madrugada e os ecos crepusculares das épocas, dos tempos, congraçando-se e reorquestrando-se na atmosfera, diante de alguns poucos que, antes de ser escolhidos, vagavam ali na área por sorte. A área é aquela em que as casas dormem com folga entre os jardins e quintais.

Esses que vagavam presenciaram uma anunciação e um aparecimento. As fibras da fantasia se aquecendo e encarnando no ar, dutos incandescentes sob o céu da madrugada, artérias de um material não-catalogado pelas quais uma musicalidade nova se manifestava, amplificada pelo coro da ‘armada crepuscular’ e pelas harmonias corporificadas pelos sons dos que antigamente habitavam aquele sítio, aquela localidade.

Nesse disco, o que conhecemos é a musicalidade da computação tomando um vulto aberrante, grotesco e ao mesmo tempo sublime. Tomando a forma de um monstro espectral, mostrando-se em uma exuberância inaudita — por um curto período — sobre os relvados bem tratados, entre as árvores, ao lado dos arbustos, espalhada pelos parques e hortos, pelos tapetes de grama que germinam nos ‘interiores extremos’ (os nossos), no mundo misterioso da escuta. Os guardinhas não sabem o que está acontecendo, nem o que fazer quanto ao que está ali. O mistério noturno se evapora, desvanece e dispensa uma cinza turva, restos de tecnologia cintilante, detritos de equipamentos anormais consumidos em toda sua potência e então esgotados, membranas engenhosas, um dia firmes agora descartadas; um lixo que não é deste mundo.

Não houve um porquê, não houve sentido exato, não houve repetição. Houve um acontecimento e seus entulhos a tornar-se a herança de uma nova arqueologia do futuro.

Nancy Grossman: “Portrait Of A Man”

32. Oneohtrix Point Never :: Age Of

A sinfonia não é um modo de constituição multi-instrumental a originar uma obra musical. É, antes disso, uma matéria de coalizão. Um corpo das ligas fluídas em que se confundem e se comunicam as possibilidades, frequências de diversos tipos e matrizes, as tessituras ficcionais, cinemáticas, imaginativas e sonoras, de modo a recriar, num ambiente de luz rara, remota e ainda assim esplendorosa, magnífica, a experiência de adentrarmos no mundo. É um “recriar do mundo” que depois permite falseá-lo, de certa maneira adulterá-lo, retorcê-lo ao ponto em que encontrará sua natureza última, essa estando fora de sincronia com a natureza conforme se apresenta normalmente.

As besteiras cantadas ao longo do disco, as músicas “pop” (todas horríveis), formam uma espécie de “pólo dialogante”. É contra eles e em reação a eles que a sinfonia floresce.

31. Rejjie Snow :: Dear Annie

A música negra de alguma forma sempre foi proibida. Ou melhor, sempre foi proibida antes de ser absorvida e tratada nas estações de amortecimento, decantação e mestiçagem da ‘indústria evolutiva’, as estações que possibilitaram milagres tão grandes quanto era a fome em neutralizá-la, originalmente.

Sempre foi proibida em todos os estilos, em todas as cidades, de todas as maneiras pensáveis. A proibição não é uma imposição da lei de uma época, nem um embargo formal, não é também um bloqueio físico como num gueto que se institui oficialmente, não é uma interdição de caráter institucional.

A proibição é simplesmente uma disposição psicológica coletiva em que os resíduos e escombros neuróticos de uma época e de uma sociedade vão sendo carregados e despejados não em um aterro, mas em uma cultura, e mais do que isso, em uma proposta para a humanidade: uma proposta que é tão descritível quanto fugidia, mas contém dimensões melódicas, rítmicas, coreográficas. Um ‘esquema místico’ relativamente definível. O Mardi Gras, o samba, o rap, o blues, o rock, o ragtime dos rios do sul americano, o soul e o jazz foram proibidos, e o foram de maneira mais ou menos encoberta e evasiva, justamente porque são mais do que música — e por isso mesmo são tão plenamente música — quando atingem o esplendor da invenção.

Essas músicas e compreensões musicais são geradores. São geradores e dínamos utópicos que descarregam sobre o chão do mundo tocável e tradicional um líquido de volume denso e um magma estrangeiro. Um composto que revela-se não apenas na figura física e artística de homens e mulheres que executam a música em si, revelam-se não pelo que está sendo informado e comunicado verbalmente — não poucas vezes lixo capitalista meramente reciclado, imitado, obsessões empresariais, insumos da mentalidade burguesa sem qualquer amplitude além do banal, do torpe.

Esse composto se revela através de sua ação contagiante, que contamina e purifica; desinfeta e abre o espaço do mundo compartilhado para o domínio de uma força forasteira, de uma coalização ameaçadora que tem no fator “primitivo” apenas sua superfície. Abaixo da superfície, um mundo novo. Alguns discos espelham e induzem a aparição desse mundo novo. E aqui é onde estamos.

30. Eiko Ishibashi :: The Dream My Bones Dream

A definição de espaço — assim como a da maioria das outras coisas — passa obrigatoriamente por sua vocação máxima. O espaço é sua vocação máxima, e para o entendermos devemos entendê-lo assim.

O espaço é o canteiro de criação, o recinto destinado à criação. O espaço “musical” existe para o preenchermos com uma paisagem. A paisagem das luzes que acendem de uma forma heterodoxa, a luz que cintila num ramo das “frequências”. Obviamente, nem toda música cumprirá esse preenchimento, esse paisagismo. E haverá músicas que serão o exercício incontestável dessa modalidade da invenção, até por “entenderem” que esse espaço, para sê-lo, não é preenchível com qualquer coisa, por qualquer combinação acidental de ornatos e artigos botânicos. Essas, as do ‘preenchimento radical’, são músicas de uma qualidade espacial também porque confirmam a máxima vocação do espaço como “território” não apenas humano, mas naturalmente conectado ao criar.

Não há qualquer contradição no fato de discos assim, como “The Dream My Bones Dream”, se conectarem (com sons, com os gestos de composição) a um tipo de imaginação celeste, a um eixo ficcional do “espaço sideral”. É incontível sua fome e sua inclinação ao paisagismo que perfura a camada do espaço conhecido — o “físico”, o “descritível” — e cuja ajustagem é descobrir e ‘continuar a realidade’ em novos espaços vistos, explorados e inaugurados.

Anselm Kiefer: “Everyone Stands Under His Own Dome of Heaven”

Utopia e as senhas da infinitude

São as grandes obras visuais sobre a espessura dos tempos, como “Downton Abbey”, que nos fazem perceber que a paisagem do mundo se modifica de maneira violenta. O que ocorre em 100 anos é monstruoso. Não perceberíamos o impacto se acordássemos todos os dias nesse trajeto de um século. Ou, antes, perceberíamos aos ‘pequenos sustos manipulados’, como fazemos ao ver as fotos do que era a visão de nossa janela 20 anos antes, e 20 anos antes disso, depois constatando com uma pequena olhada atualizada que algo se modificou.

O mundo e tudo com ele vai mudando como se numa cadência similar a uma certa música das consolidações e dos blocos digeridos mutuamente (pensem no disco do War On Drugs de 2014, ou numa certa música eletrônica, como a de Lindstrøm em 2008): um elemento de cada vez, a se juntar e mudar o todo em contínua costura, em construção progressiva e quase silenciosa, ainda que pequenos golpeamentos e retraçados na planta original, pequenos solavancos do sublime portanto, aconteçam (sendo também absorvidos, como no caso da grande obra de Pantha du Prince). São músicas de condensamento para adensamento.

As mudanças inesperadas e abruptas não fazem parte da gravidade basilar dos tempos, de sua cadência fundamental, embora às vezes as percebamos, notemos algo acontecendo e entendemos uma mudança inesperada, uma colisão pontual com o que “era antes”. Por vezes elaboramos em nós, ou seja, interpretamos, as “mudanças” como transmutações espantosas a reger o ‘Grande Ritmo’ das coisas.

A música pode lidar de forma a “respeitar” a cadência natural aos tempos, ou seja, tudo muito gradual e silenciosamente evolutivo, mas a música também apresenta outro mundo: o das mudanças instantâneas, dos solavancos, das discrepâncias de espessamento.

Essas mudanças tanto correspondem às descobertas vitais e drásticas que ocorrem numa vida imaginativa quanto a um desejo humano que habita o pântano da consciência, uma lógica abafada mas radical que permeia a passagem do tempo e nele se constitui, e a ele fornece cor, tessituras revigorantes, embora sutis, entrelaçadas à lógica da progressão calma: a utopia.

O sentido de utopia é vasto, mas a síntese é que importa: utopia é o que acontece, primeiro de forma interna, quando enxergamos o que está soterrado, o que não se fez evidente ainda.

Leon Kossoff: “Children’s Swimming Pool 11 O’clock Saturday Morning”

Utopia é o movimento de abertura das frestas que liberam o olhar, os encaixes fundamentais e antes ocultados em sua anatomia e necessidade. O mundo se alimenta da utopia, se constitui de utopia e desses “vislumbres-de-quebra-e-encaixe”. É ela, a utopia, que nos é informada quando as grandes músicas apresentam a qualidade de eventos de ruptura, de epifania que se manifesta de maneira surpreendente, e logo se põem a participar naturalmente do encadeamento do mundo (do encadeamento da música, de uma determinada música portanto), sendo a partir daí, logo, naturais. Esses solavancos são menos quebras mesmo do que os vislumbres frutificantes, as senhas da infinitude.

A música pop e o jazz em fusão — o pop das crateras remotas da imaginação, o pop da cinematografia ganhando carne na mente na qual a semeadura cinemática está viva — , esses “estilos” em seu melhor, com seus solavancos e quebras vislumbrantes naturalizadas, são uma fonte de desconcertamentos, de constelações do desconcerto.

Geradores incessantes de um mundo em desconcerto a abrigar os engenhos e histórias que ainda poderão chegar e se materializar na cavidade da vida. São, em seu melhor, músicas da utopia.

A utopia participa e age no tempo, mas é uma dimensão aberta no interior da existência humana, nas grutas do imaginar e do fabular. Seu tempo é um “não-tempo” bastante particular, que corresponde à possibilidade de transmissões e irradiações das inspirações entre os homens, entre os criadores — não só os criadores meramente artísticos, mas também os capazes de criar uma biografia à margem das praças centrais, fora do alcance dos reatores de pressão social.

A utopia, de certa forma, é o que foi sendo deixado de lado e é valioso: a terra, a cidade, o bosque, a água. E é a música também, quando uma composição, e mesmo quando sua gravação, nos joga da faixa montanhosa pra faixa litorânea, nos faz mudar de cidade, nos situa em uma estrada noturna cujo ponto de destino é a ilha em cuja extensão não se verificam pontes ou acessos, de modo que não sabemos como fomos parar ali.

A utopia é a grande mudança dinâmica, é o acorde e a tessitura orquestral mofada, velha, a aterrizar de forma oblíqua com um sample. É o gesto melódico a triturar as expectativas anteriores, dos segundos passados, devastando-as para abrir caminho, logo depois, para um descobrimento a se perpetuar. É o rock, portanto.

Paul Wonner: “The Newspapper”

O espírito do rock é precisamente essa linguagem das possibilidades, dos vislumbres engenhosos e dos solavancos. Que não define o tempo “histórico” e concreto conforme este é “sentido” por nós, mas é a própria câmara na qual a história está sendo tramada e pintada, colorida e temperada. A pequena explosão de cratera que cresce em escalada e torna-se então um oceano de um novo fluido a revestir, aí como se já estivesse lá desde sempre, uma grande parte da crosta do mundo. Existe a música do tempo, no sentido de revelar a passagem do tempo. E a música do mundo, no sentido de corresponder, resguardar e alimentar os segredos do mundo.

2018 foi inigualável em discos de rock, em disco em geral.

Esse florescimento é o “incidente dos incidentes” que reativa a imaginação utópica, sua flora fundamental. É esse “incidente dos incidentes” que precede o movimento das cadências sublimes, o que golpeia a realidade com Dasein.

29. Get The Blessing :: Bristopia

A escrita de uma história se assemelha à “escrita” de uma viagem, aquele estado de descoberta contínua, o movimento humano de absorção da nova terra, de povoação íntima que é precisamente o contrário do turismo burguês, da “viagem” ao molde predatório, filistino (filistinismo sendo o mundo das conveniências). Essa ‘escrita’, das histórias e das viagens, seria uma sucessão de novidades que se revelam num plano progressivamente arquitetado e construído. Num pavimento lentamente erguido e confeccionado em seus detalhes.

Existe, nesse disco, algo assim, a repetir essa estrutura. Há esse esboço de pavimento a ganhar arqueamento, densidade, depois um esquema mesmo, este sendo gradativamente introduzido, desenvolvido e materializado em cada música. Há um “chão” cimentado e as coisas que vão nele se distribuindo e se revelando. As músicas se tornam viagem, história.

Existe também uma intenção específica que ronda o disco, uma que prefigura uma musicalidade ao mesmo tempo de histórias e de viagem. O assoalho é o oceano, o pavimento da viagem é marítimo; a história contada é alguma aventura náutica, ou é algo de maior vulto talvez: a música atingindo algo novo, impondo-se não apenas como uma estrutura análoga, mas como ficção definitiva e distintiva das viagens. Como coração das histórias, como elo entre essas duas enseadas do espírito humano, a “história” (no caso, “as histórias”) e a viagem; o elemento único que se corporifica como um ‘concerto naval’ e transporte flutuante, uma ‘embarcação composta’ que conhece intempéries, a concórdia de marés que levam a uma ilha pacificada, e, antes de repousar em um velho embarcadouro, acaba por ligar finalmente o mundo das histórias ao mundo da viagem.

O jazz em seu máximo é o suporte de enredos instrumentais que o superam como suporte e o magnificam como transporte.

28. Stephen Steinbrink :: Utopia Teased

Espaço imenso de separação entre o player e o texto imposto pelo Bandcamp

A cachoeira não é só uma queda-d’água enérgica instalada de forma sobrenatural no meio das trilhas, mas um ‘módulo de transformação’, de ‘transmutação’, se pudermos assim imaginar.

Há toda uma música “rural” que passa dos lençóis freáticos de Minas Gerais e de lá para aqueles reservatórios e bacias hídricas similares nos Estados Unidos, e vice-versa. Essa música eu gosto de chamar mais especificamente de ‘música de cachoeiras’. Me parece haver uma consonância geográfica, uma grande ritmação coreográfica de pedras, águas impetuosas e montanhas estabelecida para dar a essas músicas uma tessitura plena, identificável. São musicalidades que ocorrem “ali por perto”.

Mas sempre é mais do que isso. Percebendo o que é tramado em alguns momentos desse disco do epicista lo-fi Stephen Steinbrink, por analogia entendemos que Beto Guedes, além de uma pessoa, é uma rara “vítima” (não a única, Steinbrink é outra) de um incidente, um acontecimento existencial em cascata, que originou então outros novos incidentes a partir da mesma matriz. Os incidentes aos quais me refiro vão ocorrendo “em cascata”, e parecem ser eles mesmos frutos de uma experiência sob uma cascata, de um módulo aquático que proporciona transmutação criativa em densidade, alterando a possibilidade de uma pessoa fazer música, e de uma música continuar sendo aquela música. O que se revela por meio dessas regiões do criar é uma “arquitetura geológica” — buscada pelo contato vivo e direto, pela imaginação ou pela ‘inconsciência experimental’ (um partimento vivo da alma humana) — que instila uma certa musicalidade, e uma certa inspiração vital. Uma musicalidade de termos específicos, com seus acidentes previsíveis.

27. Nicolas Moreaux :: Far Horizons

O cinema é a arte que nos faz crentes de que o mundo humano é grande demais, bem como sua geografia é diversa ao extremo. Mas o cinema também é a reentrada no mundo, a recondução à atmosfera, ao horizonte das histórias e fenômenos que não cessam. Que não param de se manifestar e de ser recompostos com a linguagem, com o dom da ficção, no mundo.

A chegada do rock e particularmente do indie rock à “câmara” do jazz — notadamente o indie rock confeccionado no tecido dos incidentes dos anos 2000, o indie rock ‘progressivo’ portanto — é um episódio não de impurificação, mas de devolução. Essa chegada do rock devolve ao jazz sua vontade de musicar lugares e ficções com precisão, musicar as florestas e os subúrbios, e deixar um pouco de lado o musicar cansado, aquele musicar característico do mero pensamento humano e de seus recantos permanentemente indesbraváveis.

Por falar nas ficções, o Pat Metheny Group deixou uma nau à solta no meio do oceano. Esse foi seu legado.

Essa nau vagou sozinha, pelo impulso da correnteza, por anos, e então chegou a ilhas onde foi redescoberta como esconderijo dos nativos, que a tomaram primeiro como vivenda exótica, depois como transporte, onde os novos condutores morreram de fome, sede, perdidos. Essa nau apareceu enfim no horizonte de uma nova ilha, onde náufragos a repossuíram e fizeram com que chegasse em seu destino original: uma parte da terra que ainda não era conhecida nem diagramada.

O disco de Nicolas Moreaux é um pouco a aventura que nasce da conversa entre essas tantas descobertas propostas no texto. A descoberta expedicionária do “centro da terra” feita por Pat Metheny, a redescoberta do Pat Metheny Group engendrada por esses compositores do agora, a descoberta de um certo tipo de rock como peça purificadora e evolutiva a completar a engenharia da locomotiva do jazz- antes e por muitas vezes uma locomotiva condenada às avarias do gramaticismo, do baixo-racionalismo.

Agora, o cinema radical mesmo é uma outra coisa, que situa-se em uma posição além dessas trajetórias que estão expostas. Falo de uma outra anexação, uma incorporação que se deu ao longo das décadas, revelando lógicas ocultas na história do mundo que conhecemos. A brutalidade teve, afinal, seus “porquês”, a desforra se manifestou densamente com o tempo. A maneira como o jazz existe, continua e respira na Europa descreve uma infecção civilizacional. Os negros das casas proibidas de New Orleans em 1902 tramaram a reinvenção do mundo velho, que foi então executada por músicos que sequestraram, centrifugaram e fundiram a linguagem infinitamente.

Claude Weisbuch: “Calligraphie Heroique”

26. The Cradle :: Bag Of Holding

Havia um espírito, muito mais que um estilo, que os Beatles visaram atingir entre 1964 e 1966 após descobrirem o folk americano. Foi algo que começou no “Beatles For Sale”, antes das pesquisas para “Help”, e ganhou carne em “Rubber Soul”.

Uma fantasmagoria das sedas e tapeçarias rurais, das varandas com vista múltipla e cortinas costuradas especialmente para aquele sítio. É o espírito da propriedade inglesa herdada, abandonada, presa no tempo, revivendo através de uma “magia da juventude” que reconcilia e regenera.

Essa ocupação que se serve dos aposentos vagos, das louças escondidas como tesouros, das ferramentas de tratamento agrícola enferrujadas, do mobiliário mofado banqueteado por cupins e do chá estocado & azedado é uma da qual não poderia nascer outra coisa senão um relato musical.

O espírito do qual os Beatles se apossaram parcialmente ali está redivivo todo aqui.

25. Frederik Köster, Die Verwandlung & Philharmonisches Orchester Hagen :: Homeward Bound Suiteg

A composição multi-instrumental, isto é, a composição formal de orquestra, é muitas vezes e classicamente confundida com um traslado músico-simbólico, um alvoroço teatralizado; uma reunião de texturas e notas a modelar uma história, um script, um fato épico.

Ao meu ver, quando um grande compositor se vê com a possibilidade de usar uma gama instrumental ampla, ele não vai nunca se desaproximar de fato de um “teatro”, mas qual teatro? O teatro como veículo da emoção e como entidade a fazer renascer do chão negro as histórias subterrâneas com sua força primitiva, as delicadezas cardinais, os depósitos obscuros dos porões da existência humana. E não vai se desaproximar nunca do épico, que não é o registro das aventuras extraordinárias do passado humano, mas a captura exata das articulações de um maquinário instável, das frequências secretas, dos ritmos clandestinos que pairam sobre o mundo e governam a vida na Terra.

A orquestração é uma organização similar àquela que existe a definir as antigas caças, nas antigas propriedades inglesas, em que um grupo de homens muito calmamente distribuía armas, instrumentos, posições campais e se lançava à captura de algum animal. Esse animal, no caso da grande música multi-instrumental e do jazz orquestral, é a gruta das delicadezas e das luzes incógnitas, é o quase incapturável, o requinte final. A frequência perdida. o balé nas sombras — o balé que assim se revela, enquanto balé.

No jazz, a essa orquestra da caça se associam outras relações similares e complementares: um sax “caçando” o piano de fundo e ao mesmo tempo dando sentido pleno à sua existência — aliás a ambas existências — na articulação das notas que preenchem o espaço harmônico majestoso deixado pelas teclas.

Toda essa compreensão da “vida orquestral” está exposta e esmiuçada aqui. A orquestra, é só imaginá-la com a ajuda desse disco, é um grupo de busca aos últimos alojamentos do sutil, uma expedição de salvamento ao mundo da verdade capital, do verdadeiramente épico.

24. Janelle Monáe :: Dirty Computer

A praia é um monumento da reminiscência, um memorial das aventuras humanas. É o ambiente de conflagração de uma vida reconduzida à sua dimensão vital, que não é acessível em todas as épocas, em todas as estações, em todas as temporadas, em todas as geografias. Para a musicalidade tropical, aquela de matriz negra e sul-americana, a praia é um dínamo original, uma fábrica de sínteses, uma fundição das forças da utopia.

Mesmo para os mineiros Lô Borges, Toninho Horta e Tavinho Moura, acredito que a praia seja esse manancial dos mistérios que se tornarão outros, mistérios musicais — sendo a praia a que me refiro aqui “concreta” ou ela enquanto lembrança, como estância rearquitetada e transportada pela imaginação para as encostas dos rios e cachoeiras do “forte montanhoso” do interior de seu estado.

O Caribe, além de monumento memorial praiano, é esse paraíso debilitado, corroído pela história dos desbravamentos industriosos, esse arquipélago da fúria colonizadora, do encarceramento dos escravos e das fazendas úmidas. Mas também uma fortaleza intocável, um Eldorado da fuga e da conclusão da vida atravessada por pactos espúrios, consagrações às variações de uma empresa mortífera (como nos lembra a obra-prima de Brian de Palma, “Carlito’s Way”). Algo litorâneo e especialmente caribenho me pareceu resplandecer sobre a música do novo disco da Janelle Monáe.

Mas esse espírito do arquipélago talvez se encontre menos no encadeamento de elementos musicais e mais na sagração da ideia da música como esse porto fortificado e distante, onde nos aposentamos, com o qual sonhamos, para o qual confeccionamos memórias (incluso transplante das memórias de outrem) numa estrutura histórica fabular e aventurosa, perfeitamente condensada, artificial e pujante — sob a luz (e não apesar) da existência desse ímpeto fantasma das intempéries, dos furacões, dos subterrâneos de sangue que inundam os horizontes invisíveis de muitas dessas ilhas. O Caribe é uma dança eterna da música revelando-se como música, transfigurando-se cada vez mais como coisa musical, como grande harmonia dos tempos e das áreas terrestres: é o que sinto ouvindo esse disco. A coreografia eterna do arquipélago em seu contínuo pelos tempos.

23. Sam Evian :: You, Forever

Muito já foi falado sobre obras musicais (discos, canções) que fazem recordar tempos da vida, que se assemelham a dias específicos, aventuras e desbravamentos realizados em fins-de-semana exatos. Músicas cuja força se revelou nesses dias.

Pouco se falou no entanto sobre a possibilidade dessas músicas terem criado aqueles dias, terem elas mesmas dado origem àqueles pedaços de experimento vital; terem, afinal, dado aos dias luz. Luz aliás que é o “átomo”, a célula primordial da grande composição. Não é a melodia, a “frequência”, a “nota”. é a luz, a luminosidade.

O instrumento é o suporte dessa luz, o enredo melódico e harmônico é sua cintilação e sua “gramatura”, por assim dizer.

Existem obras que fazem essa luz se corporificar, como se quisesse ela se tornar “fruto”, ser colhida, coletada pelo ouvinte “produtivo” — e aqui o sentido de produção é o inverso àquele que é a própria engrenagem da vida urbana e burguesa — , descoberta em seus compartimentos (carne, sumo, caroço). São músicas que não raramente se reportam à rotina isolada, à vida insular dos lavramentos que dependem e se enobrecem com a luz, se engrandecem com a variação da luz no dia. Músicas que em seu núcleo (ou seja, não a “letra”) se referem à vida dos cultivos que têm intimidade com a luz, se referem à vida dos lugares que são eles mesmos um cultivo magnificado pela luz, avolumado pela luz, associado à luz, à diversidade da luz ao longo das horas. São músicas de fazenda, do interior na espessura do imaginado. As de Sá & Guarabyra em 1974, 1975, as de Sam Evian hoje.

A luz que abastece e provém dessas músicas dá origem à ‘gravidade espiritual’ de fazendas e estradas defasadas, fazem germinar a espessidão vital das plantações e veredas que antecederiam, em teoria, essas mesmas músicas. E não é estranho imaginar que a mesma carga de potência luminosa origine os dias mesmo, as ‘membranas de tempo’ que têm esses lugares como cenários mais palpáveis.

22. Field Music :: Open Here

Muita coisa até hoje foi chamada de “beatlesque” (música “filial” aos beatles) desde 1965, e sobretudo a partir de 1971, com destaque para a Electric Light Orchestra (no link, a melhor expedição da época pelo clássico “Across The Universe”, do disco “Let It Be”), uma “reescritura” fidedigna, mas expansiva e expedicionária, da maneira musical criada pelo quinteto, após o quinteto ter se dissolvido.

Mas pouco se fala no que os Beatles (Lennon, Mccartney, Harrison, Starr e Martin) estavam realmente fazendo quando começaram a produzir a música de 1966, 1967 e 1968, aquele artesanato de fitas velhas, com adições orquestrais e com uma meditação imersiva sobre a força dos acordes e sobre as melodias e sons que poderiam revesti-los como veludos.

O que os Beatles estavam fazendo naquele momento, e era portanto o que definia toda a extensão de sua música, era: 1º uma descrição das impossibilidades musicais se tornando possibilidades críveis e alcançáveis (orquestrações, modelos de gravação e captação, composição), com a mágica de uma obra musical podendo ser progressivamente percebida em seus detalhes prodigiosos, como se sob uma lupa da escuta, audição após audição — um “detalhismo transfigurante”.

Em 2º, uma extração ‘arqueológica’ seguida de recomposição imaginativa da topografia emocional e cultural inglesa, incluindo não só as paisagens internas, existenciais, mas a sua encarnação na paisagem externa.

Uma extração que percorria as primeiras décadas do século XX e era estendida retroativamente ao período que precederia a chegada do Rei George ao trono. Essa segunda definição do projeto de música dos Beatles sugere que suas composições foram criadas pela Inglaterra, e criaram também a Inglaterra.

Muita coisa é “beatlesque” e há nesse cinturão fonográfico algumas criações notáveis que assim são sem seguir ou se situar nos ramos que efluem dessas duas circunstâncias definidoras — e ao meu ver o Electric Light Orchestra se situou muitas vezes, embora seja mais fácil pensar na banda, a princípio, como recondutora das maneiras mais consagradas.

Muita coisa reflete e continua o que esses dois pontos indicam sem necessariamente se parecer de fato com a música dos Beatles.

Com o disco novo dos irmãos Brewis, temos um digno exemplo, não tão comum ao longo da história musical dos últimos 50 anos, de algo que está tanto cá quanto lá. Os dois termos são honrados, e a música sempre instila de maneira exuberante o “código beatle”, a ‘superfície musical’.

A verdade é que o Field Music já vem tentando há muito tempo fazer um trabalho assim, e é verdade que a banda não se restringe a uma continuidade vigorosa das “duas condições beatle”, muito menos se inscreve como mera estação de reproduções competentes das maneiras musicais dos Beatles.

Seus discos anteriores e principalmente este novo pertencem aos anexos e sítios infinitos da música inglesa pós-Beatles, e o expandem a enigmas impronunciáveis com uma disposição beatle — o que apenas confirma o fidelidade à primeira matéria definidora da obra beatle, uma obra que, de forma misteriosa, apenas começa com os Beatles e se desdobra-se perpetuamente de modos tão variados, assombrosos e flexíveis quanto a imaginação permitir (o improvável se tornando provável, crível).

É certo, de qualquer forma, que honrar e seguir os “dois grandes tópicos” do mundo musical beatle já seria suficiente para distinguir uma grande autoria e uma grande aventura na música.

21. OddAtlas :: OddAtlas

A evolução do carro é concomitante com o apodrecimento ambiental das cidades.

Acontece que antes das cidades apodrecerem seria possível, ainda assim, criticar enfaticamente os automóveis, e não apenas os “automóveis” como um conceito e uma aparição do progresso mórbido, também os automóveis de dada época, os carros que hoje são ossadas elegantes e pacíficas — um dia considerados pestes da evolução urbana pelos mais extremados ou mais tapados.

Da mesma forma, seria fácil para alguém nascido anteriormente a certas construções na orla notar o “apodrecimento” da cidade, ali nos anos 50, 60, como já acusava-se a respeito do Rio, de Ipanema, de Santos.

O progresso pode evoluir para trazer cicatrizes e infecções incuráveis às cidades, mas mais perigosas que essas chagas é a perda do raciocínio fundado na experimentação, no mistério, aquele que pode, eventualmente, anistiar o progresso, depois de investigá-lo, descrevê-lo, dissecá-lo com paixão.

O tempo tende a ir curando o passado, mesmo o passado fundado no temor, numa certa conveniência entorpecida. Da mesma forma, o raciocínio que leva a crer que a “motilidade” das épocas cria novo interesse e nova graça para as coisas, que então ressurgem de uma forma renovada, contem algumas verdades. Mas existe mais que isso.

O fato de densidade é que o contraste é belo, a mestiçagem pode ser bela, tendem ambos a isso. E misturar as épocas e seus pedaços é uma ação que gera contrastes, mestiçagem.

O que acontece mesmo é algo assim: as épocas são como indústrias fantasmas. O tempo é como uma, é uma garagem fantasma. As épocas vão elas mesmas passando e reformando os objetos reunidos na ‘massa de realidade’, concedendo peças, realizando a transmissão de elementos materiais e impronunciáveis às coisas que sobreviveram, aos carros e aos prédios por exemplo. Para “ter sobrevivido” é preciso ter, um dia, vivido, ou seja, define-se “vida” e “sobrevida” aqui como termos de uma certa invenção e de uma constatável inclinação à ‘sonoridade dos mistérios’.

As épocas são postos de recauchutagem e preparação de uma nova sensibilidade, que não quer apenas o ressurgimento renovado, mas aquilo mesmo que a passagem do tempo ofereceu, aquilo em que a passagem do tempo trabalhou nas indústrias secretas. As marcas do visível e do invisível.

A propósito, o resumo da melhor arquitetura do século XX é instilar a criação de um futuro musical, tramar um senso de conforto que, antes de funcional, seria uma escapada à música. Essa arquitetura é a antítese da arquitetura do temor (Itália católica, São Paulo fora do Parque do Ibirapuera).

A questão a reajustar nas próximas décadas é: música envolve retornos, passagens, e é preciso experimentar possibilidades de uma viagem criativa a 1965, 1966, que também são, em si, épocas musicais. Poderíamos imaginar coisas parecidas a respeito do que afinal cerca a arquitetura, que é a ossatura da existência, e o urbanismo, que é imaginação voltada à rejardinar um mundo animalizado pela distorção dos intentos científicos. Dentre esses elementos que cercam a arquitetura e o urbanismo estão os carros por exemplo.

Eu poderia usar esse texto para falar de outros discos. Falar das músicas que “imitam” essa cadência automobilística, as que tornam o carro de 1977 visto ontem perto do parque uma enorme descoberta, com suas repinturas aparentes, e a última já meio passada, mofada; com suas ferrugens e peças obsoletas insubstituíveis.

Mas vou revelar aqui músicas que me soam como a garagem funcionando, os funcionários — que não são funcionários mas sim artesãos no tempo, preparando essa reconstrução mágica — concentrados e entusiasmados. Estamos aqui, nesse território de música.

Anselm Kiefer: “Lilith”

O Cinema Oceânico

Música não é tanto um acontecimento do ar quanto é das luzes e dos mares. Uma ocorrência da vida náutica noturna, com toda aquela vegetação submersa — não sempre, mas essencialmente análoga às plantações “secas” (também musicais) — que só seria flagrada em sua complexidade com uma arquitetura luminária. Uma armação de holofotes, um sistema de lanternas engenhosamente posicionado e bastante resistente.

Esse sistema corresponde — é descrito portanto — tanto ao que ocorre nas cavidades internas da composição, isto é, naquilo que vai acontecendo e se acendendo na música, quanto ao que se desenvolve na escuta, na escuta livre e por isso mesmo expedicionária, na escuta dedicada a atingir os refúgios e recantos musicais, “naufragar” em seu experimento, em sua pesquisa. É um naufrágio que se dá de propósito, para que sejam realizados os rascunhos topográficos, as ‘contagens e desenhos de espécimes’; e iluminar, com essa gama de ações da ‘arquitetura subjetiva’, o terreno da composição.

Há portanto o sistema de luzes que o compositor monta e a ele concede temperamento, intensidade, texturas, sombras auxiliares. E há o nosso.

As luzes exigidas, as luzes que colocamos e instalamos por meio de um canal íntimo com a música, são luzes cuja ocorrência o compositor previu. São de certa forma uma “composição”. É uma composição “nossa” que se funde, mexe com a composição original.

São luzes da expansão da vida interna (musical e humana), de expansão dessa “vida marinha” — a vida marinha que existe em nós e na própria música.

Marianne Kolb: “Unmarked By Drops Of Rain”

Isto é, a composição é uma remontagem de algares, uma fabulação das escarpas oceânicas, que se tornam então um organismo vivo, convertem-se em um “cinema” aquático, com as luzes armadas pelo autor, e com as luzes complementares que estão sendo solicitadas. Que estão ali, antes de tudo, em espírito, e vão sendo realocadas para iluminar um mundo inteiro, aquele que foi fundado pelo compositor, e também aquele que existe nos limites da nossa vida, aquele que tem na potência musical, na música em si, um sistema de construção completo, com betoneiras, escavadeiras, plataformas, compactadores de solo — o nosso mundo portanto.

A música, em suas fusões misteriosas, é esse sistema construtor, esse projeto de construção do nosso mundo, ao qual a qualidade de nossa própria experiência com a música vem se juntar como equipamento essencial.

A escuta é um compromisso de mergulho, um mergulho “vital”, que ativa, com holofotes e faróis submersos, as paisagens. É um mergulho de soldamento, que religa as luzes circundantes. A escuta é vulnerável ao que ocorre no mar, às correntes, às precipitações, e tem seu esquema de luzes influenciado por esses movimentos, que são os movimentos da vida, dos passeios, das madrugadas (o tempo musical por excelência), das experiências, e esses “experimentos da vida” também influenciam o mergulho e a música ‘original’, o alcance e a curvatura das ‘lanternas orquestradas’.

A escuta é um ato em densidade, e de adensamento. As luzes, aquilo que portanto concedemos à música com a abertura de um canal profundo e irrigado pelas experiências, ampliam os sentidos compostos, adensam esses sentidos compostos. E adensar é reencontrar a vida. É dar vida.

A escuta é a capacidade humana de, não apenas encontrar e conhecer os oceanos e seus jardins aquáticos peculiares e iluminados, mas de concebê-los. Vive em nós um novo oceano, uma nova parte de um oceano, uma nova formação oceânica, um novo pedaço de ‘terra oceânica’, a cada grande disco conhecido e absorvido de forma generosa.

20. Father John Misty :: God’s Favorite Customer

O violão como uma cama desértica asfaltada, um leito ancestral de aplanamento vasto, o piano como a vegetação florestal que começa a se anunciar de forma surpreendente no caminho, o baixo como variedade climática a adensar chão e horizonte. Esse disco é a música transmutada como essa jornada pelas cavidades irregulares da ficção e da utopia americana; ou como o hotel decadente, de um luxo antigo e ameno, a nos descansar nos intervalos ou nas memórias posteriores da jornada.

19. The Internet :: Hive Mind

O que está sendo tramado em boa parte desse novo disco de Matt Martians, Steve Lacy e seus cúmplices é a revelação da música como um suporte pleno para a utopia.

Tudo o que é improvável e ocorre numa música, é utopia, é manifestação da utopia. É, a partir desse primeiro fato, o traslado da utopia para os trópicos auditivos e imaginativos, as dimensões fundamentais a irrigar a existência.

Esse disco é portador de uma concepção: a música como fábrica de utopias, como centro de tratamento e fornecimento de utopia, da anomalia revelatória, que suspende a normalidade. É reservatório da música como uma sequência de “atentados” contra as expectativas, como uma série de desvios da realidade (originários e representados primeiramente pela “conspiração” dos acordes), desvios esses que não levam ao descampado em erosão, ao caos desgovernado, mas à praia despovoada que estava ali e não se conhecia.

A utopia é a potência que conduz a “fábrica” de interações entre os tempos. E é também a que conduz a vida de quem é absorvido pelos tempos a ponto de ser tragado para suas periferias e subúrbios profundos, aqueles que guardam as substâncias essenciais ao tempo. Os tempos são vivos e sobrevoam os outros tempos, abrem-se como castelos também, abrem-se para outros tempos e para as pessoas capazes de experimentá-los. Mas o que determina a “vida no tempo”, a vida em captação radical do tempo, é um vislumbre que é obtido nas grutas, em um retiro de cisão com o próprio tempo.

Vale em 1997, onde por vezes esse disco parece ir, vale em 2018, o ponto em que o disco está e a localidade que ele se propõe a redesenhar. São habitantes das grandes grutas, grutas que existem nas latitudes utópicas, os que compuseram esse trabalho.

18. Matty :: Déjàvu

A Bossa Nova era a ‘trilha do Dasein’ em um vilarejo. Não uma trilha calma, mas uma originada das tramas que surgiam serenas de uma paisagem fantástica e de uma vizinhança — Ipanema — erguida como vila a habitar o improvável. Uma vila litorânea incrementada com a “serrania” artificial de prédios insipientes e elegantemente modernos, talvez a honrar o porte improvável da geografia.

Era o “retorno humano ao mundo” — o Dasein portanto — , ao hemisfério nobre do “mundo da vida”, aquele em que as potências sublimes da criação humana se reconectam com as potências da criação do próprio mundo, da Terra.

Esse “princípio” Bossa Nova, a manifestação musical de um urbanismo na frequência do Dasein, teve desdobramentos vários, e se bifurcou em uma dúzia de “novas bossas novas”, como aquela radical variação mineira orquestrada pelo Som Imaginário, ou aquela outra, anterior mesmo à bossa nova “formal”, que projetou uma ponte sobrenatural entre o morro e Ipanema (África e Brasil), um transe de estética celestial deflagrada pelo convívio entre “dois continentes”. Esse acontecimento foi chamado de “Os Afro-sambas”, e foi feito por Baden Powell e Vinicius de Moraes.

Pra mim, a Bossa Nova é portanto um espírito, não um estilo musical.

É o espírito que marca essa música da cidade em alvorada “no mistério” — uma alvorada de cores se recombinando — , esse som da cidade em reconstrução continuada, em busca da concórdia dos grandes experimentos no retiro da imaginação.

O quase-cover do Steely Dan de “Royal Scam” (“Clear”) envolve esse exato impulso de continuidade e reanimação, que é condutor de um disco que me lança a reincorporar a Bossa Nova, me atira ao campo de uma compreensão renovada da “Bossa Nova”.

Sheila Vaughan: “Transfixed”

17. Brandon Coleman :: Resistance

O que músicos dos anos 70 como Stevie Wonder, Amnesty e principalmente James Vincent tentaram realizar com a música de matriz negra, com o soul, o fusion e, em uma definição mais ampla, a síncope, foi a transformação dessa forma musical em música sacra.

Mas que música sacra seria essa? Não a das missas ou a das catedrais (embora seja uma presunção nem um pouco absurda a possibilidade “Songs In The Key Of Life” ser executado na vitrola em homenagem ao nascimento de jesus cristo), mas a que torna definitivamente espessa a experiência com as verdades redentoras da vida e do mundo; a que possibilita e adensa a visita a um continente sagrado que é antevisto pela alma e reabsorvido como seu relevo fundamental através de um milagre: a reordenação final entre os elementos musicais e tecnológicos, entre essas duas matrizes de criação surpreendente, uma sendo o trajeto silvestre de mistérios inefáveis, outra sendo a fonte de combustível a permitir o trajeto em si e seu percorrimento.

Esse intento “sacro” tem continuidades óbvias, como o novo disco de Brandon Coleman, que assim são — continuidades — menos pelo “soar”, pelo “estilo”, e mais por um território da sensibilidade que vai sendo reconquistado e apurado, mais pela capacidade de regravar no tecido vivo do mundo os trajetos e adensamentos misteriosos.

O soul é o suporte, a síncope é o motor. Toda a fantasmagoria que surge da música e vai ganhando carne através do suporte, da combustão dos motores, é obra de ‘orquestradores das matrizes’, aqueles que sabem como opera-las e temperá-las. Estamos sem dúvida diante de um deles.

16. Otis Sandsjö ‎– Y-OTIS

A música de câmara é aquela que existe primeiro através de uma certa complexidade de enredamento. Mas não acaba nisso. É também, a música de câmara, aquela que acontece e é desempenhada nas câmaras recônditas da escuta, de forma a acender, como num quarto cerrado numa parte interditada da imaginação, luzes que estavam apagadas. Uma música a se hospedar em um salão interno desocupado e a conflagrar uma aparição. É uma música do religamento, uma arte com essa consistência.

Já a fusão, o “fusion”, não é simplesmente a mistura de dois modos de se fazer música, nem de dois elementos primos ou improváveis, mas sim de dois modos de reintegração da alma humana à musicalidade.

O primeiro modo é o que emociona pela articulação inesperada, pelo retorno da aparição anterior — agora transfigurada, reiluminada — , e, com essa emoção, ocasiona uma jornada exultante e intransferível pelas ‘províncias abissais e interiores’, um deslocamento nuclear para essa nova terra cuja ‘constituição nerval’ é exatamente a musicalidade, pertence à ‘espessura final’ da musicalidade.

O segundo modo que participa da ‘fusão essencial’ é o que opera uma “cura” provisória e convida a alma a uma exteriorização, ao passeio liberto, ao itinerário em que a música vai sendo compartilhada e despejada pelos espaços que se conhece, pelos trajetos, pelas próprias “câmaras do Dasein”, que são as “câmaras da alma do mundo” (os jardins, o mar, a praia).

Temos aqui um disco a iluminar todos esses termos, os dorsos de cada uma dessas etapas da música moderna, e a reunir os sentidos medulares de “fusion” e “música de câmara”.

Frank Auerbach: “Primrose Hill”

15. The Lemon Twigs :: Go To School

Com o tempo, a televisão foi se revelando como um artigo de vocação bem maior que a de um passatempo, como um eletrodoméstico mais denso que uma mera caixa de entretenimento das horas vagas.

A ‘grande televisão’, aquela que transgride o registro da baboseira moldada à vida laboral, é a história do mundo arquivada, condensada, e a história sendo ainda construída — não por conta da possível potência política que a caracteriza, mas porque a história é a esplanada onde se fundem descargas de criatividade desconcertante, centelhas produzidas desde o núcleo das grandes imaginações — e o espaço dessas centelhas é a TV. A televisão, em sua grande forma, é a arte do ‘fúlmen’.

A televisão ‘do fúlmen’ é alguma coisa mais parecida com a mala do grande personagem do primeiro filme da série “Animais Fantásticos” do que com a programação das conveniência burguesas brasileiras (novelas atuais, etc). É aquele mundo abstruso, armazenado e preservado na concavidade onde as coisas fantásticas, o ‘laboratório místico’ da criação primeira, vivem e se encontram. E é onde nos encontramos de forma radical com o mundo.

Existem essas músicas e discos que são a TV. Tanto por um motivo, mais elementar, quanto por outro, mais denso. O primeiro: porque seu horizonte sonoro e musical remete a uma TV nostálgica, a uma TV basilar, reconstrói um arco de experiências fulminantes e de fragrâncias de “outro mundo”, “outro tempo”. Ou seja, são discos “de TV”, e, de forma particular, discos da TV “clássica”, sincronizados de forma sutil aos filmes coloridos dos anos 70, aos filmes tradicionais da Eslováquia, ao acervo que, quando convocado, acaba por imprimir o significado radical de “televisão”.

O segundo motivo: ao adentrarmos o mundo concebido por esses discos, onde suas qualidades ficcionais — que são decorrência menos do que as letras apontam do que de tramas da musicalidade, dos incidentes fenomenais — estão compreendidas, adentramos uma série de TV. Somos absorvidos e reanimados, exatamente como ocorre conosco nos domínios da grande TV, inclusive aquela que mora e nos informa da fronteira entre a TV em sua forma mais apurada (a atual) e a TV da ‘nostalgia formadora, matricial’, a TV da “fundação”. Falo de obras como “I’m Dying Up Here”, que é aliás uma das maiores obras de fúlmen de todos os tempos, e que tem nesse disco uma companhia formidável. Ambos são obras de tempos que sobrevoam e planam cada um pelos espaços de navegação mística pertencentes ao outro.

14. Frog Eyes :: Violet Psalms

O rock no fundo no fundo sempre foi aquilo que ninguém conseguiu ver direito. O rock é o que está à deriva, e o que chegou sem perceber; não o que está em desfile aberto pelas praças. O rock é uma corrente eletrificada de emancipação em relação à ordem.

Mas é preciso entender antes que ordem é essa e a que emancipação me refiro. A ordem é, de fato, a ordem capitalista, e a emancipação é a utopia. Mas esse capitalismo ao qual o rock se opõe não é aquele que dilatou as camadas do próprio capitalismo e usou — e usa ciclicamente, na ‘grande dialética’ — o rock epidérmico, despossuído em uma encarnação sem dimensionalidade, como ferramenta escravizada. Uma maçaroca publicitária organizada em torno de um estado mórbido de utopia. Uma “utopia parasitária” que, se alimenta a utopia das densidades vitais com “contra-estímulos” — afinal a utopia se alimenta do inóspito, do falsificado — , não corresponde ao que é de fato a utopia.

A corrente do rock é de emancipação em relação à ordem da conveniência, em relação àquilo que não reside exclusivamente nos “aquíferos livres” da alma, àquilo que não está confinado na nascente, no centro “da terra” que existe — de forma análoga em relação ao centro da terra, aquele das ficções — em cada existência humana capaz de se emancipar.

O capitalismo ao qual o rock se opõe é o santuário das conveniências, do torpor temoroso, das constrições e violências que percorrem como eletricidade as relações produtivas, as confabulações produtivas, em todos os pavimentos do mundo consagrado à ciência corruptível, a ciência conjurada para o domínio e não para a salvação.

Ninguém ouviu o rock direito porque o rock não está aí pra ser ouvido (ou lido, ou tratado como margem de exame social: ou seja, ouvido), o rock está aí pra ser assistido de longe, contemplado e observado em sua imponência multiforme. Depois, recebido no escuro, como corrente que é, para recarregar frequências adormecidas, para percorrer as ranhuras desacordadas da alma humana. O rock está aí para tragar e mandar de volta para o campo visível o ‘mundo autêntico’ (mais do que novo, autêntico).

O melhor disco de Carey Mercer no Frog Eyes é também o último, o disco final, o álbum definitivo. É dito por aí que não gravarão mais nada. E é digno que a história se encerre assim, com um testamento visionário. Um documento que se mostra o último registro de expedição de uma banda de reduto (Montreal), desde o nada até a obtenção e penetração nas ‘seivas desconcertantes’. Um pequeno tratado que, lateralmente, descreve o rock em sua qualidade máxima. Como o arranjo dos desconcertos. Como a experiência musical de desarranjos e rearranjos intercalados a causar fenômenos brutais e vivificantes na escuta e nas regiões contíguas a ela.

Henry Moore: “ Henry Moore, ‘Study for Shelter Sleepers”

13. Unknown Mortal Orchestra :: Sex & Food

O melhor rock setentista da Inglaterra foi feito por desbravadores na época chamados de ‘progressivos’. Esses desbravadores elevaram o estilo à presença de uma casa antiga revitalizada, reformada, uma propriedade cheia de compartimentos, passagens e protegida por uma fachada frondosa ganhando novos habitantes e novos planos paisagísticos para o bosque interno.

O melhor do rock dos Estados Unidos foi feito por gênios da ‘composição pop em densidade’, aquele tipo de composição que enreda descobertas melódicas sob o teto e a arquitetura sonora da ‘modernidade essencial’— aquela que remete precisamente a um apartamento espaçoso e dominado por uma luminosidade espessa, mas ambígua. Inconstante, vaga, mas também presente e reconfortante.

O melhor desse rock, nos dois continentes, foi a elevação da exuberância musical a um significado pleno: a abundância de ideias musicais formidáveis, compostos únicos, a sintetizar a fortuna da modernidade — incluindo a conversão magnificante daquela fortuna existente antes da própria modernidade — , e a emprestar certa abundância “existencial”, uma profundidade ficcional à experiência do ouvinte.

A variedade do rock feito com exuberância, dominado por um sentido de vitalidade exuberante, é a variedade de um jardim. Essa variedade que chega no tempo, se desmembra no tempo, é atualizada no tempo, é tanto o jardim que floresce no ouvinte atento quanto aquele plantio que reordena as várzeas e revive as leivas das propriedades do passado, que renova com vida e pequenos novos hortos o apartamento então abandonado.

“Sex & Food” é a passagem entre essas duas vivendas, entre esses dois projetos residenciais e existenciais aparentemente dissonantes e complementares entre si, ambos capazes de dilatar os domínios da modernidade real, a modernidade conforme devemos chamá-la, que é a modernidade nas cavidades da abundância vital.

12. Kadhja Bonet :: Childqueen

O que a música dos irmãos Shulman, Kerry Minnear & cia e a de Kadhja Bonet têm em comum, além das flautas e do domínio & atração por uma mesmíssima linguagem, é um mesmo espírito, um espírito que se expressa em uma dupla dimensão, uma bidimensionalidade não exatamente contraditória.

A música, na primeira dimensão, surge como parte de uma ficção atrelada a uma tradição tocável mas remota, uma tradição na qual as construções sonoras se igualam a um mobiliário improvável, instalado nos castelos, nas paisagens botânicas esmeradas, nas fronteiras com a fantasia- esses confins sendo equivalentes às composições propriamente ditas a que esses sons se destinam e nas quais se encadeiam.

Na outra dimensão, a música aparece como marca imprevisível, uma erupção. Uma forma a se acoplar, a se expandir como ‘fenômeno corporal’, uma infestação a se espalhar por algo que primeiramente imaginamos ser epidérmico, tecido, mas é toda nossa vida.

Numa dimensão, há o prazer dessa abertura para o mundo longínquo, para a perdição que menos toma nosso tempo do que nos oferece, de volta, uma “história” nova. Noutra, a maravilha de testemunhar a gestação — não dolorosa, mas exatamente carregada, pesada — de um organismo, uma nova vida nascendo a partir da escuta.

Em 1971 os Shulman e Minnear fizeram um disco-guia — imaginem mesmo a função e o acabamento de um guia florestal impresso — que descrevia não só seus intentos musicais e condensava seus talentos, mas realizava essa dimensionalidade dupla. Era um disco chamado “Acquiring The Taste”, que talvez seja o maior disco do rock inglês. Esta aqui é o “Acquiring The Taste” da música americana.

Salvatore Grippi: “Untitled”

11. Tom Misch :: Geography

Entrar no Parque Ibirapuera, num parque imenso, nesse parque imenso, é como abandonar a máquina que funciona na cidade e reentrar no mundo. É abandonar a ‘máquina’ readquirindo a percepção do torpor interno a ela, um torpor radical, indestrutível quando dele desfrutamos e participamos.

Nesse abandono, estamos readquirindo ao mesmo tempo, além da realidade do torpor (tomando ‘consciência viva’ dela), a tessitura do mundo. O cheiro dos eucaliptos, as ervas rasteiras, levemente queimadas pelo programa de controle, pelo tratamento diário da vegetação no parque, produzindo uma espécie de fragrância do chá solta pelos bosques, estendida por um perímetro majestoso.

Esse cheiro é o da reconexão e do religamento do mundo que transcende a máquina, a “relojoaria” desordenada.

Nesses passeios, descobrimos e visitamos uma usina de recriação, um projeto em tudo experimental que capta a substância das melhores cidades imaginadas, e a torna seiva para um acontecimento sobrenatural no meio da cidade. Um reator de “novas cidades” cercado por campinas que funcionam tais quais escudos contra o assédio do que há em volta (o nada). Essa reconexão com o mundo é o disco.

Às vezes penso nesse espetacular “Geography” também como o próprio reator, ou uma câmara de ajustes dessa estrutura, e em Tom Misch como um dos engenheiros desse projeto eterno, testando, a partir do pop, geringonças novas de tratamento, de desenvolvimento do terreno, de dragagem do lago. Depois as abandonando, usando as sucatas, suas carcaças, as máquinas já aposentadas — como “Yours Is No Disgrace” do Yes, reencarnada na música que escolhi para a sessão; construindo outras geringonças, outros veículos funcionais que acabam por adquirir feições de carros lunares, brinquedos. Máquinas da vida.

Um engenheiro agora, enfim, sintetizando os esboços possíveis e chegando a seu parque final, definitivo. Esse é o ponto de maturidade de um artista de música que se propõe a algo tão grande quanto a missão à qual Tom Misch se propôs: mexer e reorganizar o grande pop.

Henry Moore: “King and Queen”

10. Mass Gothic :: I’ve Tortured You Long Enough

Os caminhos da cidade podem ser vias de repetição, alamedas da conveniência e do supérfluo, do compromisso neurótico, da sensatez e do equilíbrio consagrado ao labor e ao enfado. Ou seja, um circuito sub-racionalizado sem variedade ou vida. Um cemitério de experiências, um esgoto existencial.

Esses mesmos caminhos, em outro horário, podem ser um labirinto com seus mistérios perpétuos à disposição, com seu fulgor primeiro anestesiado, depois renovado e transfigurado pela noite, com sua luminescência de matizes, variante, a orientar e a amedrontar. É um renascimento das vias.

Havia uma banda muito boa de indie rock “sinfônico” uns 10 anos atrás em Nova Iorque, o Hooray For Earth. Quando ela acabou, seu compositor principal, Noel Heroux, passou a se identificar como Mass Gothic.

E aqui Heroux faz junto com sua mulher, Jessica Zambri, um disco que mostra o rock como terreno à parte nas cidades. Um canteiro sitiado e escondido aliás em todas as cidades, com um lote específico para cada cidade. O rock chega musicado aqui como abrigo secreto, e como uma jornada de saída — pelos labirintos, pelos itinerários, pelo concreto dormente — e de contínuo retorno aos portões de entrada, esses ainda sob as brumas do silêncio secreto da madrugada.

“I’ve Tortured You Long Enough”, esse documento sobre um casamento que produz e de onde irrompem aventuras, é o próprio rock como aventura no silêncio, uma aventura acalmada e exclusiva às cidades interiores.

9. Ought :: Room Inside the World

As épocas não são épocas, mas sim cinemas. Não são “tempos”, mas formas cinematográficas soltas pelo tecido sutil da história, pelas arenas do inconsciente encarnável, imaginável. Quando escrevo que são formas soltas, digo que são maleáveis.

As épocas são menos mananciais do cinema do que o contrário: o cinema é manancial das épocas, o cinema vem “antes”, e alimenta as épocas. As épocas são cinemas, cinemas “processados”, porque são um conjunto de “ficções” musicais (com ritmo, com riqueza harmônica, com textura de algo que se revela no som e através de nosso poder de imaginar) a conter situações humanas que, se aconteceram factualmente ou não, sabemos que aconteceram de qualquer forma.

Ou seja, estavam dormentes na camada viva do mundo, nos jardins do sutil, deflagráveis e atualizáveis no interior da câmara secreta que conduz o mundo humano em sua jornada. Compõem a flora dessa câmara as obras concretas, as obras em si, as histórias, os cinemas, os livros, que são produzidos depois que conseguimos respirar as fragrâncias liberadas pelo sutil. As épocas são menos a história que se conta a seu respeito e mais o que flutua no vapor alterado, na transparência e na translucidez das janelas exatas e às vezes turvas do inconsciente. São isso e são o que se cria a partir disso. São “cinema”, começam como “cinema” e acabam depois sendo “cinema” propriamente dito.

Os anos 80, o lugar, o tempo, etc, são um cinema de escapada, de fuga, de fantasia, de computadores, de música viva, de morbidez esperançosa, de amargor, de um monte de coisa, e também de um paisagismo intrincado e auspicioso nos subúrbios do mundo produtivo. Um paisagismo que informa sobre uma jardinagem utópica, mais próxima das fantasias de “outro mundo” (pensem em Tolkien mesmo) do que da fertilidade empresarial, do descanso da burguesia.

Voltar ao tempo é voltar ao cinema essencial do tempo. E voltar ao cinema essencial do tempo é musicar o tempo, é reavê-lo — e a seu cinema — através de uma corrente das luzes de frequência e da fabulação harmônica. A música é um elemento de fissão, que proporciona potencialização e direção ao “cinema”. É a música, portanto, que precede o cinema, que no entanto pode ser musical assim como a música pode ser cinematográfica.

Voltar ao cinema essencial do tempo (que não é nenhum filme específico) é transfigurá-lo através de um duto de melodias e revestimentos instrumentais que, antes de fornecer uma engenharia lógica e milimétrica, antes de “expressar o tempo” com falsa fidelidade ao que se fundiu como imaginário popular relacionado ao tempo “factual”, são estruturas de tração, motores formidáveis de reintegração e propulsão imaginativa para os que estão em busca de um “cinema” (época) a povoar (nós).

São máquinas que nos desembarcam num grande complexo de jardins, edifícios e outros compartimentos de “artificialidade viva” entre 1982 e 1986. O cinema do tempo, que vem e se manifesta através da música que o revitaliza, tem a grande virtude de ir reformando o tempo “concreto” conforme seu sabor. Os tempos vão melhorando com o tempo porque seu “cinema” vai sendo ampliado e enriquecido pelos mundos ficcionais, por essa seiva de existência em experimento, pelos campos da ficção cujo nutriente misterioso e intensificador — assim é desde sempre — é a música.

A música, e não só a distância que “cura”, vai nos trazendo o ‘cinema do tempo’, a espessura viva do tempo, e a transformação do tempo em algo cada vez mais vívido e interessante. Esse trajeto é cinema, os filmes que percorrem esse trajeto são cinema, a verdade que nasce em cada época através desses esforços é e torna as épocas cinema.

Esse é um disco formidável de projeção do cinema do tempo. Um castelo dos mais exuberantes dentro de um tempo de fantasia a realizar uma retransmissão inaudita das coisas do tempo. A reencarná-lo em possibilidades que, percebemos agora, estavam não completamente erguidas. Estavam surdas em toda sua maravilha.

Leon Golub: “Burnt Man”

8. Roy Montgomery :: Suffuse

Chernobyl é uma cidade fantasma e um vilarejo que documenta em seu silêncio uma tragédia da ciência do século XX. Mas, mais do que isso, é um mausoléu aberto para experimentos que perpassam a imaginação.

Sendo assim, é também um espaço sujeito ás visitas das ‘cavalarias abissais’, uma delas é a que chega à cidade de passagem e sorrateiramente para destampar as caixas dos instrumentos (pedais e umas treze guitarras) e realizar uma sinfonia geológica e florestal.

Realizar, a bem da verdade, uma aparição, uma aparição geológica, a nos oferecer os sopros de uma nova ciência, essa mais especial e permanente, do que a aquela que acabou condenando 35 anos atrás o vilarejo industrial planejado.

Essa nova ciência é a “alquimia” desses pinheiros, dessas pedras e tijolos envelhecidos e funestos despencando das antigas construções funcionais se transformando na musicalidade do amanhã, nas instilações da nova história que passa a ocupar a cidade amanhã. O disco nada tem a ver com Chernobyl, me parece, mas esse descompasso é um descompasso na formalidade, sem dúvida está ali o vilarejo, musicado quadra à quadra.

7. The Samps :: Breakfast

O primeiro intento da música de dançar nunca foi a dança mesmo, mas uma transformação radical: tornar a música uma intrincada ciência de luzes. Uma ciência de texturas luminárias — essas não representadas, mas manifestadas pelos instrumentos — que se acendem através da trama sinuosa e da cadência oscilatória proveniente dos acordes, das montagens harmônicas.

A música de dançar então, em essência, seria a redescoberta da luz como invento, e seria testemunhar o preenchimento e instalação dela nas cidades; uma volta à sua origem como milagre dos parques e passeios públicos, e uma volta ao começo do século passado, aos novos lustres dando vida às mansões, aos primeiros abajures elétricos, às pequenas cápsulas de cintilação sendo instaladas pelas ruas e nos hospitais, em torno dos prédios.

Esse intento é a ‘fundação imaginativa’ desse estilo, mas foi “resolvido” umas poucas vezes, originando na música algumas ilhas iluminadas, que na verdade se desmembraram desse continente eletrônico e dançante do “som” em si e se isolaram em oceano livre.

A descoberta de uma ilha de luzes como essa me parece não tanto como o retorno de uma das ínsulas que se isolaram de seu vasto esconderijo na infinitude, mas sim com um sequestro, uma abdução e uma reforma profunda.

Primeiro, é como se nos descobrissem, e nos sugassem. E é também, e mais importante, como se o mapa inteiro do mundo fosse redesenhado, e os rabiscos correspondessem a novos continentes, novas ilhas projetadas não “com”, mas a partir do impacto sublime de um “sistema de cintilação” singular sobre sua flora e seus relevos. No fundo, a música de dançar, a música eletrônica como um feixe que inclui a música de dançar, existiu desde o princípio pela inspiração e com a missão de, em seu melhor, rascunhar uma nova terra. Chegamos aqui, certamente.

A musicalidade eletrônica, concebida com os sons perdidos, com os fantasmas primeiro soterrados, depois regravados, sampleados, com equipamentos improváveis, em princípio é uma grande alusão a essa terra que alojará tempos remotos, geografias possíveis e aventuras dos vales exteriores; afastados e vindouros.

Paul Wonner: “Two Men At The Shore”

6. Sam Anning :: A Field As Vast As One

Um livro que se propõe a contar a história arquitetônica, botânica e humana do pequeno vilarejo que existe há 500 anos nas montanhas do Missouri, ou no vale que se forma em torno dos pés de uma floresta européia crepuscular, de auroras generosas no verão, de pequenos riachos que se congelam em janeiro.

Imaginem essa obra a narrar as influências fluviais, as estradas abertas e depois fechadas, os casarões apodrecidos por infiltrações, depenados e saqueados, os castelos desabitados, despossuídos e depois desabados. As mágicas infusões de vida depois das guerras, as guerras que soterraram e alijaram fazendeiros, animais.

Esse livro pode ser facilmente transmutável, e se tornar uma pintura, uma série de pinturas com o sabor e a tinta que represente a fantasia do encadeamento geográfico, e pode ser transmutada em música: a música como o relato máximo das aventuras do tempo e das paisagens.

Falar da música é recomunicar a música, e é mais que isso: remusicar a música.

Falar da música através da invenção, de uma invenção análoga e complementar, é, ainda que de forma modesta e limitada, rearmonizar as harmonias e calibrá-las em um artificialismo expansivo, propagante.

Recomunicar a música quando ela se instala vigorosamente em nosso mundo vital é continuá-la, é conceder à música a envergadura de seu relato primordial, de sua vocação radical (a vocação à ficção, à infinitude, a um artifício exuberante).

Continuar a música, por sua vez, além daquilo que essa continuação é mesmo, isto é, uma escavação em densidade a ampliar sua área de mistérios que vascularizam os interiores fundamentais da Terra, é abrir novos portos. É anunciar e facilitar o itinerário da música como embarcação que vem se ancorar em outros atracadouros, em novos portos da alma humana. Em outras pessoas. É, em certa medida, fazer a música chegar, enfim, a seu destino.

A música que permite esse arco de reflexões, e permite a esse esquema complexo sua realização, é a música da vida, análoga aos recônditos finais e supremos do “Mundo da Vida”. Ou, aquela região do “Mundo da Vida” que não apenas guarda segredos que encarnam e se reproduzem em vastidões fertilizadas, mas que também se liga ao ‘Dasein’, que é a experiência humana em encontro com uma vitalidade desbravante, inesperada e inventiva.

5. Louis Cole :: Time

A ‘orquestração do assombro’ é aquela que revela algo mais ou menos específico: a voz humana enfeixada em instrumentos que lhe garantem altitude, e a elevam a um encontro com o tecido harmônico que seria, em uma dimensão paralela, aquele mesmo tecido que reveste as geografias que nós mais gostamos: as geografias da ‘nostalgia perpétua’, das montanhas invernais, dos lagos mágicos, das praias de férias distantes.

Esse é o princípio da orquestração do assombro, que talvez seja a ‘real orquestração’, ao menos desde que a música é a música. Desde o momento em que os acordes foram reestruturados — com a eletricidade, com a possibilidade de ressoarem através de materiais diversos, com a invasão de organismos e ‘sementes harmônicas’ de outros lugares, de outros planetas; e aí encadeados, em fusão com a voz humana, para conduzir repetições calculadas, repetições que se prestam a um processo de ‘ignição da vida aventurosa’ — da vida em utopia. O que descrevo aqui, esse “desde que a música é a música”, esse bioma preparado a ser visitado pelas ‘orquestrações do assombro’, é a música popular experimental do século XX, o ‘grande pop’.

Cada encontro dessa ‘música popular do experimento’ — e cada encontro nosso — com essa “orquestração do assombro” é um encontro com o que ainda não foi, com uma novidade que não cessa, e é também uma espécie de confluência interplanetária. Uma experiência com uma cavidade alienígena, em uma espécie de taiga estrangeira, uma experiência que a música revela e expande, propaga.

“Time” é repleto desses encontros, e a ousadia de carregar um nome tão simples, categórico e por isso mesmo opulento, é perfeitamente justificada pela infinidade e qualidade desses encontros, encontros que se dão albergados numa utopia musical.

4. Gabriel Kahane :: Book Of Travelers

Incidente é o dano na estrutura que ao mesmo tempo desestabiliza e reorganiza, é a erosão que ao mesmo tempo suga e traz de baixo um tipo de matéria que, não sendo apenas inédita, é capaz de semear uma expansão extraordinária de um campo repleto.

O incidente é a mudança, a quebra que irriga as partes de uma estância, de uma localidade, de um corpo que carrega uma seiva ao mesmo tempo dinâmica, resplandescente e manante: o mistério. O ‘incidente’ é o acontecimento que chega para banhar o mistério, embora pertença originalmente a seu leito primordial.

A grande arte musical do século XXI é feita praticamente toda ela de incidentes. Essas peças são constituídas todas de uma articulação de incidentes e entre os mistérios incidentais, de fragmentos forjados por incidente, de alternâncias e intercorrências infinitas entre incidentes.

Gabriel Kahane com seu novo disco é o exemplo definitivo da ‘lógica do incidente’ na música.

A manifestação do incidente é múltipla e não tão amiga das descrições e da exatidão. Mas pensem numa música que trama em cada parte de sua evolução o desfecho espantoso, e que ainda assim, quando se mostra, revela-se como único possível. Uma música que ao invés de apenas confirmar o que já foi tocado, recomeça em cada ciclo de repetições, adentrando uma zona da infinitude, que antes de ser “monótona”, carrega em sua vastidão todos os biomas do planeta.

O disco ressoa os incidentes preparados e manifestados nos apartamentos insulados das cidades médias, nas casas ermas situadas após os lagos recentemente descongelados, nas casas costeiras que escondem o mar com matagais angulosos e mal cuidados, nos interiores das casas rurais nem tão modestas e nem tão extravagantes dos subúrbios do mundo rural americano. O incidente tem peso e tem encarnações mais ou menos físicas.

O incidente artístico é a representação máxima daquilo que a modernidade “real” traz de melhor: o movimento de “desescravização”, essa sendo a arte da humanidade. Isto é, o triunfo diante das escravidões (as mais sutis e aparentemente insignificantes) através do descoberto, da quebra que rearmoniza. O incidente é a ferrovia do verdadeiro viajante, o que se nega à escravidão das conveniências, dos submundos cindidos com a densidade.

Nesse disco maravilhoso de viagens, ficam alguns entalhes do mundo americano e do próprio mundo descobertos. Monumentos antes desconhecidos — mas então desvelados e agora acessíveis — se apresentam ao nosso campo de testemunhos e percepções. Essa descoberta, esse desvelar, é o incidente maior.

Escutar o disco é como passear pelo mundo apocalíptico que “recriou” esses monumentos, que deu-lhes afinal o significado pleno, pujante. Que lhes tornou, depois de um dia nascerem como ornamentos da civilização, obras misteriosas, mexidas em sua espinha pelas substâncias fenomenais da musicalidade dos tempos. A experiência com “Book Of Travelers” cresce como se transitássemos por esses monumentos, por essas esculturas perdidas, abandonadas, incompletas e novas (autênticas novidades da paisagem) ao longo de uma jornada americana, que também se fez como jornada pelo mundo humano.

“Book Of Travelers” é também um trem que desbrava os ambientes imaginativos eleitos pela grande ficção americana em todos os tempos. Os passageiros viajantes não são apenas nós em encontro com esses monumentos caindo aos pedaços mas renascidos, e não só almas que passaram um dia por vácuos desérticos, vales bravios, tundras soporíferas e construíram aventuras, eventualmente um país.

Os viajantes são toda a ficção já escrita e pensada, a ficção a ser escrita e pensada; a música oferecendo-se aí como uma espécie de viagem de longo alcance, possivelmente sem um fim certo, dando-se como trajeto e transporte a acomodar toda a ficção e todas as nossas experiências com a ficção.

3. Stephen Malkmus & The Jicks :: Sparkle Hard

O que a vida nos subúrbios americanos possibilitou nos anos 80–90 além dos filmes a abrir uma passagem entre aquele mundo e o da fantasia foram as grandes construções de garagem, de lá retiradas e exiladas no porão nos meses de inverno. O computador montado por Steve Wozniak e Steve Jobs é um análogo às invenções de distorção e luz de bandas como Elf Power (todas a ela coligadas na Georgia), Pavement.

A música de Stephen Malkmus (Pavement) é um amalgamento de violência e delicadeza, uma liga complexa formada pela energia captada através dos circuitos internos da garagem, pela radiação solar dos fins de semana em Stockton; pelas histórias que são destiladas de forma incógnita do subúrbio à música, e, numa espécie de engenharia da vaporização invisível, da música de volta ao subúrbio, e assim de maneira cíclica e interminável.

Essa vida não é uma de delícias, de prazeres, de paz nem de tranquilidade, mas disso e de uma perturbação emudecida, aliviada. É uma vida de histórias. De histórias que florescem no gramado. A música de Maklmus é uma música de histórias. Porém (assim como ocorre em outros grandes discos pop como o de Elvis Costello, desse mesmo ano) as histórias dizem respeito menos ao que está cantado e letrado do que à mágica volátil da musicalidade, ao que está gaseificado e lançado ao ar pela reunião das fibras sonoras e musicais, em ‘gaseodutos mágicos’.

Essa observação serve para definir uma porção de obras de Malkmus, tanto dentro quanto “fora” do Pavement (os Jicks são uma continuidade natural da música do Pavement).

Acontece que nunca houve uma obra como esta. A variação infinita entre delicadeza e brutalidade aprazível, entre radiações contemplativas e combustivas, gerou um disco único, um representante magnífico do mundo das histórias, uma obra que se reconduz ao “nosso mundo” através de túneis abertos desde uma fenda no mundo das histórias. “Sparkle Hard” é esse disco das histórias não pelo que ele conta, mas pela sua variedade musical, pela sua musicalidade à beira da ficção — na verdade, já afundada nela.

O disco é ele, em si, uma grande historia acontecendo: uma volta de alguém que já havia voltado tantas vezes. Um retorno quase banal, já que o movimento de ressurgimento fora tantas vezes conspirado e executado. É mais um regresso de um compositor que foi considerado um gênio em “sua época”, e como gênio perdido, antiquado, buscando um novo eldorado musical, voltou tantas vezes. E aí vemos que a volta de fato aconteceu, aconteceu agora. Só agora.

Mas não foi bem uma volta. É que a sua época é justamente agora, não foi antes. É uma volta que supera a lenda. É maior que a história que precede e sustenta a lenda. Essa é uma das histórias desse disco, um enredo chocante que em um só tempo derruba uma lenda da musicalidade dos subúrbios, e para o lugar dela escolta uma nova lenda: a mesma pessoa. O mesmo compositor, agora revelado em todo seu instinto de invenção e experimento, em todo o mistério das exatidões atordoantes contidas em suas composições. “Sparkle Hard” é um disco que conta a verdadeira história desse compositor e de sua música, que a atualiza de forma surpreendente, épica.

A outra história aqui esculpida é uma história da modernidade, que não é bem uma “época”, um período da “história”, nem um “sentimento” de progresso e decaimento, mas um leito de possibilidades e um reservatório das utopias. Ou seja, a estação das fendas na realidade.

O que este disco conta é o rock como memória do porvir, como pensamento instrumentalizado, musical, fermentando e tramando a eterna chegada, o retorno que se mostra de forma inequívoca: assombroso e desconcertante. O rock como o suporte possível da inspiração para o tecimento do que pode acontecer. E talvez seja essa sua grande história e a grande marca de modernidade que ostenta.

O que “Sparkle Hard” é realmente: Stephen Malkmus reinventando o sentido profundo de invenção, invenção sendo exatamente: conceber aquilo que todos pensaram que já tinha sido concebido, mas não tinha não.

Wayne Thiebaud: “Delta Water”

2. Vinyl Williams :: Opal

A cidade é o pavilhão contínuo das inspirações mágicas e dos desabamentos humanos que nela ocorreram. O santuário das expedições que a formaram e da falência que a asfixiou. É sobretudo a propriedade dos jardins que foram projetados e foram se asselvajando, com a vegetação corrompida pela maturidade, pela vocação indomável, que lhe é própria e pede à humanidade chancela, senso de regência e concepção — embora a humanidade possa conspirar para transformá-los, e aí de maneira inapelável, em bosques estéreis, endurecidos, inférteis (não se combinam com nada).

A cidade é a casa dos jardins que nem existem mais, e daqueles que ainda não foram plantados, nem projetados, com suas espécies interessantes, suas águas possivelmente férteis, opostas à hostilidade.

Os grandes discos jardinais, as grandes obras do chamado “rock psicodélico”, são os documentos e cartografias iniciais, os papéis de origem, o arquivo fundador que precede engenharia e execução desses jardins da cidade que mudarão o destino do pavilhão contínuo.

Estamos aqui, por esses jardins, e não posso garantir que, nessa safra de verões e invernos matizados, conjurados nos bosques expandidos onde foram feitos os grandes discos dos anos 70 — essa taiga aberta pelo Dungen —, o disco novo do Vinyl Williams não seja o rei, o projeto-marco do jardim. O jardim municipal que se alastra por todo o mundo pictórico e imaginativo humano.

1. Aaron Parks :: Little Big

Nesse disco, o que ouvimos é o piano elétrico e a guitarra quase-acústica como compostos complementares. São substâncias que se influenciam e se energizam mutuamente, se alimentam entre si e geram com essa dupla alimentação das fagulhas, das notas abrasivas, uma química original. Aquela que, através desse exato magma gerado pela contaminação entre os dois instrumentos, recria algo maciço no meio do oceano, no meio da vida fluída e no meio das possibilidades totais: um atol.

Um organismo perfeitamente exuberante e improvável.

O que ouvimos aqui é a mutação mágica de dois instrumentos que erguem aquilo que, no esquema do mundo natural, mais se parece com a música. Isto é, uma materialização reconhecível e palpável de algo que não parece uma obra terrestre, mas está na Terra.

O fusion é a fusão do extraracional, do ultra-elaborado e do quase matemático com as propriedades particulares ao ‘Dasein’. Ou seja, é a fusão dessas coisas — dessas matérias do arco dos sistemas de formulação e pensamento — com a flora da orla das utopias, com a nervura dos incidentes formidáveis, com o horizonte das descobertas que estavam ocultas nos mananciais remotos, tudo isso sendo Dasein.

Mas a fusão vai além, e além. As grandes bandas do fusion, tanto aquelas que surgiram no auge desse modo musical nos anos 70 quanto as do hoje, são entidades de alimentação e reordenação do que está alheio a elas.

São atóis que guardam paisagens obsoletas e guardam, em seus subterrâneos, atributos de reordenação, de reforma, de fusão profunda portanto. A fusão cria a fusão, oferece a fusão, de modo contínuo e infinito.

O obsoleto é matéria da utopia. o obsoleto não se encerra nele. É uma estrutura de redescoberta e recriação constantes. Esse fusion dos grandes autores é um atol paisagístico deslocando-se livre pelo tempo, fundindo suas paisagens e vestígios certamente obsoletos às paisagens de ilhas emudecidas, de continentes inchados e inanimados, taigas repletas de fantasmas. Realizando uma transfusão paisagística.

A banda de Aaron Parks — de certa maneira uma recriação deste outro recife— é um atol livre pela circunferência do mundo, a flutuar e colonizar ilhas (as interiores fundamentalmente) com suas aparições florais e animais, suas porções biológicas, geológicas e vegetais. É um atol a distribuir pelo mundo da música, por suas ilhas, essas mesmas porções vitais, reanimando refúgios, lugares fechados e esquecidos; gerando, na união desses atos de concessão e suprimento, uma música que soa mística e grandiosa, levemente “obsoleta”, mas sempre ‘final’, definitiva, embora inesgotável.

É essa a grande fusão à qual me refiro, a que começa na música de fusão propriamente dita (a priori as fusões entre música clássica, a música pop experimental, o jazz, os instrumentos todos) e termina em uma dimensão posterior, termina alcançando o diâmetro real de uma fusão: uma atualização verdadeiramente próspera da música e do mundo, de seus tratados cartográficos, uma transfiguração da música de modo a recriá-la como algo abertamente orientado ao ‘Dasein’, que é o espírito de reintegração do “magma” imaginativo que nos permite ‘viver’ de fato um atol; readquirir potências vitais perdidas e que podemos readquirir, em parte, com fusões, com transfusões, sendo a música em si o agente e o objeto fluido de algumas delas.

Conheça também o texto sobre os discos do ano anterior, o meu site sobre música, que hospeda as sessões do curso de música, e a página que contém meus outros textos e meditações recentes a respeito da música.

Anselm Kiefer: “Rorate Caeli Desuper”

--

--

Um Mundo de Música

Investigações na arte, micropesquisas diversas e coisas escritas por Claudio Szynkier. Mais sobre mim aqui https://ummundodemusica.medium.com/about