Os Grandes Hemisférios

Um Mundo de Música
7 min readJan 27, 2019

Algumas telas adoradas por mim nos últimos meses: pinturas, desenhos, arte em geral

Esses últimos anos foram (e os próximos serão) de pesquisas e sondagens pela arte (sobretudo a recente, não a de agora, mas a do passado relativamente próximo: 140 anos pra cá) concebida no Canadá, na Oceania e no Leste Europeu. Aqui estão alguns artistas que me marcaram nessas aventuras de peregrinação e colheita.

Arthur Heming e o retrato longínquo de um cenário que 100 anos antes ou depois da pintura foi parte do itinerário pelo qual se movem os personagens de uma história específica- uma que foi inventada e realizada em um livro de ficção “fora do mundo”, um volume de fantasia.

Elie Lambert e os estranhos passeios que antes eram competições, e se tornaram passeios com o tempo, porque não tinham como ser ou se tornar outra coisa.

Childe Hassam e um exercício de assombração: as casas que não são propriedade nossa e não pertencem à memória familiar de ninguém (não pertencem à minha, à sua). As casas que não estavam ali, mas agora, com as luzes se encadeando e transformando o olhar, você descobre que já as habitou por alguns dias.

Henry Ossawa Tanner e esse episódio de domesticação, sobre o qual não se pode dizer muito além do que a luz revela: a embarcação, não se sabe se do passado ou do futuro, atracou em uma nova África. O “episódio” não é nada menos que o termo de representação da espessura da ficção humana, aquela que se move em “paralelo condensado” com a realidade.

Arkhip Ivanovich Kuindzhi, aqui com o disco “Veckatimest” (do Grizzly Bear) revelado como um “mundo” em suas dimensões totais na tela, na sugestão de seus movimentos sutis, assoalhos e itinerários possíveis.

Aqui, Frank Hennessey mostra o perigo que aparece do nada, de surpresa e diante do qual, imagina-se, todos vão para suas casinhas se esconder. Mas melhor ter calma: não é perigo, o bicho tá só passeando pelo lugar. Agora, a questão mesmo é: esse lugar existe? O “mistério” (sua espessura na arte) é precisamente esse questionamento e sua presença nessa tela.

Aqui, ainda na escola canadense de viagem e arquivos das aldeias interrompidas, paralisadas pelo inverno (a mesma e Frank Hennessey)- Graham Norwell decidiu inventar (mais um) Canadá, e de quebra alguns acordes e arranjos do grande folk. É uma pintura que preceitua esta canção aqui. O folk é a dimensão da paisagem escondida, ainda a se completar, ainda a se fazer, e cultivada por um grupo de pessoas nesse “mistério a ser transformado e continuado”.

O inventor de Canadás Graham Norwell convida Ross Traut pra musicar.

Quem nunca quis acordar e de repente descer para da uma volta na rua e se deparar com essa façanha, o invento que regula um quarteirão e o faz reencontrar seus traçados e cores naturais, ATUAIS portanto? Nicholas Hornyansky, também canadense, te dá esse sonho pedindo a você não mais do que uma certa inclinação a ser absorvido.

O atual mora ali no imaginado. Fora isso, Hornyansky ainda mostra a sobreposição orquestral de blocos arquitetônicos sublimes que são análogos a blocos melódicos comunicantes que podem, da mesma maneira, existir numa música.

Um cara que sabia pintar uns fantasminhas muito bonitos, que nem pareciam fantasmas exatamente e sim os espectros presentes e atuais do mundo em colapso anestésico, era Bruno Bobak.

Essa do romeno Marius Bercea é quando de repente aterriza no horizonte da arte uma nave cuja situação é precisamente esta: a de um ovni peculiar que acaba por nos levar a um passeio radical pela “antiguidade socialista”, mas também por algum tipo de memória futura, que a imaginação passa a acalentar a partir daí.

Na fantasia campesina do romeno Serban Savu, as pessoas não têm rosto definido, mas as sombras e a luz que substituem suas feições e especificidades faciais conferem uma “realidade vital”, que, na tela, constitui uma fantasia acima de todas as outras. Um fidedigno “socialismo mágico”.

A pintura “Calgary”, de E.J Hughes, indica que a beleza da cidade pode ser uma beleza na “compressão”, na facilidade com que ela se transmuta em brinquedo pictórico. A cidade, bonita ou feia, se reanima comprimida e “sitiada” em um novo estágio: o da sua infância.

Já A.C Leighton, canadense como Hughes, transforma o castelo gelado em uma embaixada de outro mundo, de outra espécie, no meio de um parque na cidade. É uma estranha ‘fusão comprimida’.

A pintura do neozelandês Douglas Macdiarmid seria essa música aqui: a transformação do horizonte terrestre em outro planeta, possuído por novas dimensões, que vão sendo readquiridas e descobertas em uma aventura de encontros. É “futurismo fenomenológico”.

Aqui, o mesmo Douglas Macdiarmid rascunhando e redesenhando o mundo, fazendo germinar do traço leve uma arquitetura fluída e maleável, a nos deixar morando por ali mesmo. é uma geografia rabiscada e adaptável q nos acomoda por vocação e por um elemento de ‘hipnose’ nas linhas.

Outra descoberta notável fornecida pela mesma obra: essa coisa do traçado em conjunção com as cores ir achando uma tela, uma espessura geográfica, um lugar e também um estado, uma suavidade, como numa viagem daquelas boas. Esse “ir achando” dos traços é o próprio trajeto da viagem.

Em todas as telas de Macdiarmid, a arte como encarnação da possibilidade de quebra inventiva.

Outro fenômeno neozelandês é Doris Lusk. A geografia se desenha numa “procura” vaga, numa sondagem q acaba por inaugurar uma nova geografia; compartimentos de cor q ñ existem sozinhos, e juntos criam bancos de areia, mar, árvores q cumprem sua real vocação como aposentos humanos.

Na arte de Trevor Moffitt se revela a vida rural neozelandesa. É uma vida habitada por caipiras grotescos, praticantes do labor primitivo e expedições intermunicipais. O segredo dessa arte: reabsorver o rústico, o grosso e o brusco para um aconchego no mistério, na “luz paralela”.

Trevor Moffitt e a banalidade torpe de um banheiro expandida a um território próximo ao da música.

O que a neozelandesa Edith Collier fundiu nessa pintura dos anos 20 não foram os azuis sobrenaturais com as sombras, nem o lago com as cabanas, mas a suavidade arcaica, imemorial, com a fantasmagoria de um mundo escondido.

No estudo da neozelandesa Frances Hodgkins, os blocos de tinta e cor são calibrados a criar um todo coeso, fazendo ressumar uma “descoberta emocional”. Essa verdade e esses blocos existem em um “dinamismo condensado” similar ao que experimentamos aqui.

John Brack pintou a rotina “hípica” em Melbourne, Austrália, no Século XX. O comboio selvagem dos cavalos, o chão e as laterais do hipódromo denotam essa compreensão da vida na cidade como experiência numa terra afastada, isolada, fantasiosa. É a imaginação prolífica q caça o coração da urbe.

E além: a hípica dos cavalos que nem “apareceram ainda”, não “existem ainda”. não nasceram, mas vão nascendo, passam a existir com o olhar interessado. O mundo hípico como rascunho do mundo a inventar.

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Investigações na arte, micropesquisas diversas e coisas escritas por Claudio Szynkier. Mais sobre mim aqui https://ummundodemusica.medium.com/about